sábado, 30 de julho de 2022

DO MEU CORAÇÃO PARA O SEU - (Américo J C Peixoto)

 
 

PERFIL DE UMA VERDADEIRA FACILITADORA DE APRENDIZAGENS

 

Querida mestra,

Como vai?

Dirijo-me a você, carinhosamente, talvez sem lhe conhecer. É que temos um amor em comum, quando olhamos na mesma direção... trabalhamos com crianças.

Esquecidos da profissão que os diplomas nos conferem, ou das atribuições que os contratos nos impõem, conversaremos sobre a missão de cada um de nós, já que con+versar é falar de nossos sentimentos e, missão vem do coração.

De minha parte, digo-lhe: a missão brotou quando descobri que me juntando às crianças de fora', eu poderia resgatar a minha 'criança de dentro'... Fui órfão de pais vivos; embora os meus tenham morrido octogenários, jamais morei com eles. Minha juventude, também se sufocou nos rigores de um internato religioso.

E, com você como terá sido?!

Fico imaginando... Quem sabe, terá caído nesse 'mundo das crianças' só para não desperdiçar a primeira chance que o mercado competidor lhe proporcionou?

Ou, ao contrário, quando de sua infância feliz, por acaso, já não contava histórias para suas bonequinhas, em escolas imaginárias? Ou chegou a dar aulas para as galinhas amontoadas no quintal? Seu cachorrinho, já seduzido, sentava com as orelhinhas em pé para lhe escutar as explicações?

Naquela época você nem havia escutado a palavra caris-ma, mas, ele já habitava em você... e agora?

Gostaria com este texto lhe estimular a fazer o melhor com o que sua infância terá lhe dado ou negado. Sartre diz-nos que é isto que importa.

Disponibilizo, em seguida, algumas pérolas que recolhi ao longo de três décadas dedicadas à educação continuada, enquanto realizava um de meus sonhos: ser fio de náilon, invisível, mas que une contas, formando um colar para fazer acontecer, sem deixar nenhuma sozinha se perder.

Agradeço a acolhida que deu a esses meus toques, esperando, em breve, receber seus retoques.

Um abraço amigo.

 


A seguir, algumas características sugeridas como integrantes do perfil de uma verdadeira facilitadora de descobertas e aprendizagens.

 

PAIXÃO

pelas crianças é a primeira garantia de êxito para quem desejar empreender algo em favor delas. Pai (no chão), quer dizer jogar no chão toda a racionalidade e seguir o coração. Os apaixonados estarão sempre desejando interagir com seus amores. Se alguém, ao lhe falar de crianças perceber que você tem brilho nos olhos, cuide-se... ele saberá que você é apaixonada por elas.

 

CLAREZA DE VALORES,

é fundamental à sua decisão de trabalhar com crianças. No mercado prevalente das cifras, seu contracheque dificilmente fará sucesso. Mas, na escala de valores de sua escolha você descobrirá que aquilo que significar para as crianças, valerá mais do que tudo que lhes possa dar.

 

EXPRESSÃO DO AFETO

Torna-se indispensável para algumas pessoas, aprender a expressar fisicamente o afeto que nutrem pelas crianças. O poder do toque é inestimável. Um simples abraço ou um ligeiro produzem mais resultado que um discurso ensaiado. Lembre-se: sensibilizou, é igual a faturou; muito explicou, complicou.

 

PERCEPÇÃO,

quer dizer: sacar, cair a ficha ou o chip. Prefira a lucidez à inteligência. Um gênio míope renderá poucos dividendos... Ao ser interrogada por uma criança, sintonize-se em AM, ouvindo apenas as palavras ditas. Mas, não esqueça de fazê-lo também em FM, que lhe revelará, na verdade, o que ela deseja. Quando lhe perguntar: "você vai sair agora"? O que ela de fato, quer saber, é se demorará a livrar-se de você, para fazer o que quiser...

 

COMUNICAÇÃO

Chorar é a elementar forma de comunicação da criança. É a expressão máxima de dor ou de amor. Depois aprenderá a ouvir e falar, nesta ordem. Logo, para ensiná-la a ouvir é indispensável que se fale com ela adequadamente. Para tanto, considere que seus cinco sentidos funcionam conjuntamente. Para sermos bem ouvidos e ela aprender a falar, teremos que nos aproximar dela e falar-lhe 'olhos nos olhos', além de tocá-la. O motor da inteligência é o afeto.

 

CRESCER SEMPRE,

isto é, não parar de aprender, que por sua vez significa não parar de mudar. Diplomas são como os perecíveis, tornam-se vencidos. Então, é necessário manter-se atualizada. Não pare de estudar. Mas, se isto não for possível, leia livros e revistas e ao fazê-lo, saboreie mais as entrelinhas do que as próprias linhas. Todavia, se isto também for inviável, troque ideias com colegas mais experientes. Einstein adverte que há três grupos de pessoas: as que falam de obviedades, outras que falam dos outros e, finalmente, as que falam de ideias. Saiba escolher.

 

"CRIANÇA DEVE SER SACADA, COMPREENDIDA E CORRESPONDIDA"

 

A CRIANÇA E O AMOR

 Durante uma aula a professora pediu para que as crianças buscassem no pátio da escola algo que pudesse representar o amor. Após o recreio, as crianças apresentaram seus símbolos. A primeiro apresentou uma flor e disse: - Professora, eu trouxe uma flor. Sinta seu cheiro. Como é perfumada! Assim é o amor! A seguinte trouxe uma borboleta e disse: - Professora, aqui está uma borboleta. Veja que lindo o colorido de suas asas. Vou colocá-la na minha coleção. A terceira, tinha um filhote de passarinho em suas mãos. E disse: - Olhe como é pequeno e delicado. Achei ele caído no pátio da escola.

Enquanto as crianças apresentavam seus símbolos, a professora notou uma, bem quietinha no fundo da sala, sem nada em suas mãos, e lhe perguntou: - O que você trouxe? - Professora, eu vi a flor e quis pegá-la, mas deixei lá para que continuasse a perfumar o lugar. Vi a borboleta, mas não tive coragem de lhe tirar a liberdade. Vi o filhote de passarinho, pensei em pegá-lo, mas vi o olhar triste da mãe e lhe devolvi o filhotinho. Então, posso lhe dizer que trago o perfume da flor, a liberdade da borboleta e a gratidão da mãe do passarinho.

A professora emocionada agradeceu e disse que o amor só poderia ser trazido verdadeiramente de dentro do coração.


Fonte -  In: Toques & retoques: inflexões em psicopedagogia / Américo J C Peixoto. Editora Paka-Tatu, 2021. Belém-PA. Pp 75-79.

Imagens da internet.

Sobre o Autor - Américo José de Castro Peixoto, nasceu em Manaus-AM, em 1938, casado, estudou Filosofia, Pedagogia e Psicopedagogia.  É Bacharel em "Ciência da Educação" e pós-graduado em "Educação Inovadora, com Habilitação em Ensino Superior". Exerceu Magistério Superior e diversas funções de direção em órgãos públicos e privados. Há trinta anos, fundou o Núcleo de Estimulação da Criança-NECTAR, em Brasília, passando a dedicar-se, com exclusividade, ao atendimento psicopedagógico. Entre suas publicações impressas destacam-se: "Declaração de Compromisso do Professor para Ingressar no III Milênio" e "Caderneta de Poupança Emocional". Atualmente reside em Belém.  e-mail: ajpeixoto@uol.com.br  

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Amizade (Rubem Alves)

Lembrei-me dele e senti saudades... Tanto tempo que a gente não se vê! Dei-me conta, com uma intensidade incomum, da coisa rara que é a amizade. E, no entanto, é a coisa mais alegre que a vida nos dá. A beleza da poesia, da música, da natureza, as delícias da boa comida e da bebida perdem o gosto e ficam meio tristes quando não temos um amigo com quem compartilhá-las. Acho mesmo que tudo o que fazemos na vida pode se resumir nisto: a busca de um amigo, uma luta contra a solidão...


O encontro acontecera de repente, mas era como se já tivessem sido amigos a vida inteira. A experiência da amizade parece ter suas raízes fora do tempo, na eternidade. Um amigo é alguém com quem estivemos desde sempre.

Pela primeira vez, estando com alguém, não sentia necessidade de falar. Bastava a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro.

“Christophe voltou sozinho dentro da noite. Seu coração cantava ‘Tenho um amigo, tenho um amigo!’ Nada via. Nada ouvia. Não pensava em mais nada. Estava morto de sono e adormeceu apenas deitou-se. Mas durante a noite foi acordado duas ou três vezes, como que por uma ideia fixa. Repetia para si mesmo: ‘Tenho um amigo’, e tornava a adormecer.”

Jean-Christophe compreendera a essência da amizade. Amiga é aquela pessoa em cuja companhia não é preciso falar. Você tem aqui um teste para saber quantos amigos você tem. Se o silêncio entre vocês dois lhe causa ansiedade, se quando o assunto foge você se põe a procurar palavras para encher o vazio e manter a conversa animada, então a pessoa com quem você está não é amiga. Porque um amigo é alguém cuja presença procuramos não por causa daquilo que se vai fazer juntos, seja bater papo, comer, jogar ou tramar. Até que tudo isso pode acontecer. Mas a diferença está em que, quando a pessoa não é amiga, terminado o alegre e animado programa, vêm o silêncio e o vazio - que são insuportáveis. Nesse momento, o outro se transforma num incômodo que entulha o espaço e cuja despedida se espera com ansiedade.

Com o amigo é diferente. Não é preciso falar. Basta a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro. Amigo é alguém cuja simples presença traz alegria independentemente do que se faça ou diga. A amizade anda por caminhos que não passam pelos programas.


Uma estória oriental conta
de uma árvore solitária que se via no alto da montanha. Não tinha sido sempre assim. Em tempos passados, a montanha estivera coberta de árvores maravilhosas, altas e esguias, que os lenhadores cortaram e venderam. Mas aquela árvore era torta, não podia ser transformada em tábuas. Inútil para os seus propósitos, os lenhadores a deixaram lá. Depois vieram os caçadores de essências em busca de madeiras perfumadas. Mas a árvore torta, por não ter cheiro algum, foi desprezada e lá ficou. Por ser inútil, sobreviveu. Hoje ela está sozinha na montanha. Os viajantes se assentam sob a sua sombra e descansam.

Um amigo é como aquela árvore. Vive de sua inutilidade. Pode até ser útil eventualmente, mas não é isso que o torna um amigo. Sua inútil e fiel presença silenciosa torna a nossa solidão uma experiência de comunhão. Diante do amigo sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir.


Fonte - https://institutorubemalves.org.br/ Originalmente publicado no jornal Correio Popular, 1991/1992.
Grifo feitos por mim.

Sobre o Autor -  Rubem Alves (1933-2014) foi teólogo, pedagogo, poeta e filósofo brasileiro.