Pode-se dizer que essa questão é um dos grandes dilemas da educação infantil. Entre os que defendem a alfabetização inicial há diferentes posições e entre os que são contra também as opiniões divergem. O professor premido por concepções conflitantes, pela pressão das famílias, pela ação das crianças, sempre que pode quer refletir sobre o assunto
Isso foi o que aconteceu com um grupo de professoras da rede municipal de Caieiras, que tendo participado de um curso ministrado pela formadora Ana Lucia, trouxe a questão da alfabetização na educação infantil para o centro do debate. Ela recebeu uma pergunta aparentemente simples: O que você acha de alfabetizar na educação infantil? Por trás dessa legítima demanda dos professores há uma complexa rede de concepções a serem analisadas, que vão desde o que é ser criança hoje, a função social da educação infantil, o ensino e a aprendizagem e evidentemente de que alfabetização falamos. As respostas em geral não dão conta de esgotar todo o assunto. E é sempre importante ampliar o debate.
A criança e a cultura letrada
Para a formadora Ana Lucia, a resposta para essa pergunta está no próprio contexto em que a criança vive: Em nossa sociedade as crianças estão desde cedo em contato com a língua escrita e logo se interessam por ela, pela sua função social e querem saber sobre o seu funcionamento. Quanto mais contato, maior o interesse e a curiosidade. O longo processo de alfabetização se beneficia muito com a aproximação das crianças ao mundo letrado. O papel da escola é fazer valer o direito que todos têm de fazer parte desse universo, inclusive as crianças pequenas. Principalmente as escolas que atendem crianças de baixa renda, precisam planejar com cuidado um contato prazeroso e eficiente com a escrita. Além dessa perspectiva social, Ana Lucia também se apoia nas contribuições trazidas pelo pensamento de Vigotsky: Concordo com a perspectiva de Vigotsky, quando ele diz que a instrução é válida quando precede ao desenvolvimento, ou seja, não faz sentido a escola esperar o “momento ideal” para começar a ensinar a ler e escrever.
Sabemos que esse é um processo contínuo e que nele podem estar incluídos desafios possíveis e prazerosos para a criança e que por meio da superação desses desafios é que ela se desenvolve e pode avançar ainda mais em seus conhecimentos e competências. É plenamente justificável que a escrita seja objeto da atenção dos educadores: a concepção de escrita de Vigotsky, associada ao sistema simbólico de representação da realidade, está ligada ao próprio núcleo de sua teoria da linguagem, trazendo questões fundamentais como a da mediação simbólica. Sobre isso, Marta Kohl, estudiosa do pensamento de Vigotsky, afirma: Como a escrita é uma função culturalmente mediadora, a criança que se desenvolve numa cultura letrada está exposta aos diversos usos da linguagem escrita e a seu formato, tendo diferentes concepções a respeito desse objeto cultural ao longo de seu desenvolvimento. A principal condição necessária para que uma criança seja capaz de compreender adequadamente o funcionamento da língua escrita é que descubra que a língua escrita é um sistema de signos que não têm significados em si. Os signos representam outra realidade; isto é, o que se escreve tem uma função instrumental, funciona como um suporte para a memória e a transmissão de ideias e conceito1.
A criança que vive em uma cultura letrada – pois não estamos tratando aqui das populações indígenas, por exemplo, provenientes de comunidades ágrafas – tem a possibilidade de vivenciar um processo de alfabetização favorecido pelo contato com o meio. E isso não se dá de modo espontâneo e natural mas incentivado por um informante mais experiente, um adulto ou mesmo outra criança. Para tanto, deverá conhecer e se apropriar desde cedo dos usos da língua escrita presente em seu mundo.
Alfabetizar ou não, uma pergunta mal formulada
Emília Ferreiro, embora tenha sido influenciada por Piaget, traz em sua Psicogênese da Língua Escrita ideias que também se justificam segundo o pensamento de Vigotsky e de Luria. Ambos entendem que a escrita é um sistema de representação da realidade e concordam que a alfabetização é resultado de um domínio progressivo desse sistema, que não se resume à conquista de habilidades meramente mecânicas e/ou visuais. Por isso pode se iniciar muito antes do ingresso na escola de ensino fundamental2. As ideias desenvolvidas por Ferreiro também justificam a presença de um ambiente alfabetizador, desde cedo. Para ela a pergunta que envolve sim ou não está muito mal formulada: O que digo é que a pergunta está malfeita, porque pressupõe que a resposta NÃO equivale a deixar essa responsabilidade para o Ensino Fundamental, e a resposta SIM pressupõe introduzir na pré-escola as más práticas tradicionais do Ensino Fundamental.
O que proponho é substituir a pergunta centrada no ensino por outra centrada na aprendizagem: Deve-se permitir ou não que as crianças aprendam sobre a língua escrita na pré-escola? Nesse caso, a resposta é redondamente afirmativa. E a justificativa para sua afirmativa, para a defesa da presença da cultura escrita desde cedo, ainda na educação infantil, é bastante esclarecedora: a simples presença do objeto não garante conhecimento, mas a ausência do objeto garante o desconhecimento. Se eu quero que a criança comece a construir conhecimento sobre a língua escrita, esta tem de existir. Se eu a proíbo, garanto que a criança não possa se fazer perguntas sobre esse objeto porque eu o fiz desaparecer dentro da sala de aula. Se proíbo a língua escrita, crio um ambiente escolar no qual a escrita não tem nenhum lugar, ao passo que no ambiente urbano a escrita tem seu lugar; imponho que as educadoras funcionem com se não fossem pessoas alfabetizadas. Em outras palavras, crio uma situação anômala.
Deve-se, então, permitir que a criança pense sobre a linguagem escrita na escola de educação infantil. E para isso ela tem que estar presente. Trata-se, pois, de pensar de que forma é possível apresentá-la respeitando a cultura da infância, propondo situações onde ler e escrever tenha sentido para as crianças e faça parte da vida cotidiana.
Autora - (Ana Lucia Bresciane, formadora do Instituto Avisa Lá)
1Marta Kohl de Oliveira. Vigotsky – aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico, Pág. 68. Ed. Scipione.Tel.: (11) 3241-2255. Site: www.scipione.com.br , e-mail: centraldeatendimento@scipione.com.br.
2Para saber mais sobre as relações entre Vigotsky, Luria e Ferreiro, leia: Acesso ao mundo da escrita: Os caminhos paralelos de Luria e Ferreiro. Maria Tereza Fraga Rocco. Cadernos de Pesquisa, 75: 25-33. – Fundação Carlos Chagas.Tel: (11) 3723-3000. Site: www.fcc.org.br
FONTE - https://avisala.org.br/index.php/conteudo-por-edicoes/revista-avisala-17/alfabetizacao-e-educacao-infantil-relacoes-delicadas. Postado em 22/01/2004.
"Este conteúdo faz parte da Revista Avisa lá edição #17 de janeiro de 2004. Caso queira acessar o conteúdo completo, compre a edição em PDF ou impressa através de nossa loja virtual – http://loja.avisala.org.br"