“Gastamos muito
para encher nossos filhos de brinquedos, convertendo-os de brincadores para
possuidores”
POR JULIA DIETRICH
“As crianças
precisam de mais liberdade e alguns brinquedos, devem ser autônomos, brincar
com os amigos e, na medida do possível, ir para a escola, caminhando, sozinhos e a
pé.” É assim que Francesco Tonucci, pedagogo e pensador italiano resume
sua filosofia e agenda política. Ele, que é autor e promotor do conceito
“Cidade das Crianças”, um projeto que aposta na transformação das cidades por
meio das crianças que nela habitam, defende que todas as políticas urbanas
deveriam se estabelecer para garantir o direito ao brincar das crianças.
Célebre por ser “radical na defesa da infância”, o autor também publica sob o pseudônimo Frato uma série de quadrinhos em que discute, de forma irônica, o cenário escolar e a estrutura familiar contemporânea, que muitas vezes, impede a criatividade e a possibilidade de criação e reinvenção das crianças.
Em entrevista ao
site El Intransigente, periódico Argentino, Tonnucci, que esteve no país
em agosto deste ano, afirmou que os pais precisam deixar de superproteger
seus filhos e permitir que desenvolvam suas próprias experiências de autonomia,
entendendo o brincar para o pleno desenvolvimento das pessoas.
Confira a
entrevista do pedagogo ao portal, traduzida para o português pelo Centro de
Referências em Educação Integral.
El Intransigente: É fundamental
que as crianças brinquem, mas quão importante isso é?
Francesco Tonucci: O brincar está conectado de uma
maneira muito forte com o movimento e com a autonomia. Temos que ajudar os adultos a entender a importância disso. Para explicar, lhe conto uma anedota; meu filho mais novo chegou do seu primeiro dia na escola primária e me contou “a professora nos disse que agora é hora de parar de brincar, temos que levar as coisas a sério.” Essa foi a mensagem da escola ao meu filho. E, desde então, venho tentando dizer às pessoas que esta é uma frase absurda, equivocada e perigosa. Não tenho dúvidas que os primeiros anos são os mais ricos e importantes na vida de uma pessoa; é o período em que se fundam todos nossos cimentos.Garantir o
direito ao brincar é chave para desenvolvimento integral de crianças
A “Cidade das
Crianças” é uma iniciativa que nasceu em 1991, em Fano, na Itália, e apresentou
uma nova filosofia de governança dos municípios, tomando as crianças como
parâmetro e como garantia das necessidades de todos os cidadãos. Inspirados no
projeto, nasceu a rede de cidade das crianças. Em Roma, na Itália, as crianças
passaram a compor um parlamento infantil, capaz de incidir sobre as políticas
públicas locais.
El Intransigente: E o jogo ajuda…
Tonucci: Nestes anos
iniciais não existem professores no sentido público, não existem métodos.
Simplesmente há uma criança que brinca com o mundo. Essa é a importância do
jogo; ele é uma experiência em que as crianças vivem no nível espontâneo e não
é necessário ensiná-las isso. É brincando que as crianças têm sua primeira
relação com o mundo.
El Intransigente: Todo tipo de
brincar é valioso? Brincar ao ar livre é o mesmo que brincar no computador?
Tonucci: Brincar é uma experiência que tem algumas
características: sair no sentido de não ficar sob controle direto dos adultos, encontrar-se com amigos, aproveitando um tempo livre para viver a experiência da aventura, do descobrimento, da surpresa, da maravilha, do risco. Tendo estes elementos, todos os jogos são bons. Inclusive os tecnológicos.El Intransigente: Por que é
importante que as crianças brinquem sozinhas?
Tonucci: Não é possível
brincar acompanhado de adultos. Quando os pais dizem, “acompanho meus filhos
todos os dias para que brinquem na praça” é uma contradição. O verbo brincar só
se conjuga com o verbo deixar. Na Europa é impressionante, mas aqui [na Argentina]
também creio que acontece, em especial nas classes sociais mais ricas; para uma
criança é quase impossível sair sozinho pelas ruas. E isso os impede essa
experiência básica.
Muitas vezes nós,
adultos, pensamos em substituir esta experiência que desfrutamos nós mesmos e
parece que as crianças não conseguem viver. Substituímos isso comprando muitos
brinquedos, dando instrumentos que permitem que a criança passe muito tempo se
entretendo sozinho em casa, especialmente com as novas tecnologias, e os
acompanhando em todos os lugares. Todas respostas inadequadas. Estamos
gastando muito dinheiro para encher nossos filhos de brinquedos, convertendo-os
de “brincadores” para consumidores, “possuidores”. Para brincar bem, é
preciso ter poucos brinquedos, mas amigos para aproveitá-los.
El Intransigente: O que oferece o
brincar a uma criança?
Tonucci: Lhe permite
descobrir o mundo. É uma maneira de encontrar-se com o desconhecido. Significa
viver a experiência do risco, de saltar o obstáculo, viver o desafio de
superá-lo ou não. Ver se hoje posso fazer o que antes não podia, se posso
superar meu medo de viver esta experiência.
El Intransigente: Por que é
importante viver a experiência do risco?
Tonucci: Se não é
possível, vamos criar uma acumulação de desejos e de necessidade de
transgressão que se expressarão mais tarde, na adolescência, quando um garoto
tem autonomia suficiente como as chaves de casa no bolso ou quando essa
expressão de seu desejo se converte em uma explosão perigosa.
Muitas das questões que hoje tratamos como os dramas da adolescência, como abuso de álcool, de drogas, acidentes de
moto, – até os casos de suicídio juvenil -, tem a ver com a falta de experiências de autonomia nos primeiros anos de vida da criança. É vivendo a experiência do obstáculo que nos damos conta de que não podemos superá-lo e é aí que vivemos a desilusão. E a desilusão também é uma experiência que as crianças não vivem porque seus pais os superprotegem.FONTE - https://educacaointegral.org.br/reportagens/gastamos-muito-dinheiro-para-encher-nossos-filhos-de-brinquedos-convertendo-os-de-brincadores-para-possuidores/ Publicado em 30/10/2014
Sobre Francesco Tonucci - pensador, psicólogo
educacional e cartunista italiano, que dedicou muitos de seus trabalhos à
reflexão sobre a infância e a educação.
Julia Nader Dietrichs – jornalista, pesquisadora, foi gestora do Centro de Referências em Educação Integral.
OBS - Grifos feitos por mim,