terça-feira, 23 de março de 2021

A ARTE DE OUVIR (Rubem Alves)

 

    De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do viver juntos e da cidadania é a audição. Disse o escritor sagrado: “No princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do Verbo era o silêncio”. É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não ouve. Sabem disso os poetas, esses seres de fala mínima. Eles falam, sim. Para ouvir as vozes do silêncio. Veja este poema de Fernando Pessoa, dirigido a um poeta:

Cessa o teu canto!

Cessa, que, enquanto

O ouvi, ouvia

Uma outra voz

Como que vindo

Nos interstícios

Do brando encanto

Com que o teu canto

Vinha até nós.

Ouvi-te e ouvia-a

No mesmo tempo

E diferentes

Juntas cantar.

E a melodia

Que não havia,

Se agora a lembro,

Faz-me chorar.

    A magia do poema não está nas palavras do poeta. Está nos interstícios silenciosos que há entre as suas palavras. É nesse silêncio que se ouve a melodia que não havia. Aí a magia acontece: a melodia me faz chorar. Não nos sentimos em casa no silêncio. Quando a conversa para por não haver o que dizer, tratamos logo de falar qualquer coisa, para pôr um fim no silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio sobre a psicologia dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados naquele cubículo. Um diante do outro. Olhamos nos olhos um do outro? Ou olhamos para o chão? Nada temos a falar. Esse silêncio é como se fosse uma ofensa. Aí falamos sobre o tempo. Mas nós dois bem sabemos que se trata de uma farsa para encher o tempo até que o elevador pare.

    Os orientais entendem melhor do que nós. Se não me engano o nome do filme é Aconteceu em Tóquio. Duas velhinhas se visitavam. Por horas ficavam juntas, sem dizer uma única palavra. Nada diziam por que no seu silêncio morava um mundo. Faziam silêncio não por não terem nada a dizer, mas porque o que tinham a dizer não cabia em palavras. A filosofia ocidental é obcecada pela questão do Ser. A filosofia oriental, pela questão do Vazio, do Nada. É no vazio da jarra que se colocam flores.

    O aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A prática educativa tradicional se inicia com a palavra do professor. A menininha, Andrea, voltava do seu primeiro dia na creche. “Como é a professora?”, sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu: “Ela grita...” Não bastava que a professora falasse. Ela gritava. Não me lembro de que minha primeira professora, dona Clotilde, tivesse jamais gritado. Mas me lembro dos gritos esganiçados que vinham da sala ao lado. Um único grito enche o espaço de medo. Na escola a violência começa com estupros verbais.

Milan Kundera conta a estória de Tamina, uma garçonete.

Todo mundo gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo? Não sei... O que conta é que ela não interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas falam. Uma fala e outra lhe corta a palavra: “é exatamente como eu, eu...”, e começa a falar de si até que a primeira consiga por sua vez cortar: “é exatamente como eu, eu...” Esta frase “é exatamente como eu...” parece ser uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um engodo. É uma revolta brutal contra uma violência brutal: um esforço para libertar o nosso ouvido da escravidão e ocupar à força o ouvido do adversário. Pois toda a vida do homem entre os seus semelhantes nada mais é do que um combate para se apossar do ouvido do outro...

    Será que era isso que acontecia na escola tradicional? O professor se apossando do ouvido do aluno (pois não é essa a sua missão?), penetrando-o com a sua fala fálica e estuprando-o com a força da autoridade e a ameaça de castigos, sem se dar conta de que no ouvido silencioso do aluno há uma melodia que se toca. Talvez seja essa a razão por que há tantos cursos de oratória, procurados por políticos e executivos, mas não há cursos de “escutatória”. Todo mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.

    Todo mundo quer ser escutado. (Como não há quem os escute, os adultos procuram um psicanalista, profissional pago para escutar.) Toda criança também quer ser escutada. Encontrei, na revista pedagógica italiana Cem Mondialità, a sugestão de que, antes de se iniciarem as atividades de ensino e aprendizagem, os professores se dedicassem por semanas, talvez meses, a simplesmente ouvir as crianças. No silêncio das crianças há um programa de vida: sonhos. É dos sonhos que nasce a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo usa para transformar os seus sonhos em realidade. É preciso escutar as crianças para que a sua inteligência desabroche.

    Sugiro então aos professores que, ao lado da sua justa preocupação com o falar claro, tenham também uma justa preocupação com o escutar claro. Amamos não a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se assentar...


Fonte - Downloads/Educacao/dos/sentidos/e/mais...(Rubem Alves).pdf

A ARTE DE OUVIR (Rubem Alves) In: ALVES, Rubem.  Educação dos Sentidos e Mais


Sobre o autor: Pedagogo, poeta, cronista, contador de histórias, ensaísta, teólogo, acadêmico e psicanalista, Rubem Alves, falecido em julho de 2014, deixou como autor um extenso legado literário. Era membro da Academia Brasileira de Letras, professor emérito da Unicamp e cidadão honorário de Campinas. Seu livro Ostra feliz não faz pérola, também publicado pela Planeta, conquistou o 2º lugar na categoria contos e crônicas no Jabuti 2009.

**Grifos feitos por mim.

sexta-feira, 12 de março de 2021

REFLEXÃO - Professores na pandemia: vidas são "obrigadas" a mudar!!!

Muitas vezes a forçada de barra para "esta mudança" são acompanhadas de ameaças diretas...


O textão da Quarentena

(E lá se vão duas semanas) 
                     De Kinha Fonteneles

Vai ser um textão do desabafo sim.
Acho que todo mundo passa por momentos de desespero de vez em quando. E se estamos em isolamento social, acho que esses momentos ficam mais rotineiros.

Essa foto não é de hoje.
Hoje eu estou bem. (Por enquanto)
Mas essa foto tem história.
Ela veio de uma crise de ansiedade depois não conseguir montar uma videoaula. E é sobre essas aulas que eu vim desabafar.


Eu tenho um total de 21 turmas. 
Em tempos comuns eu gasto - mais ou menos - 3 dias para montar aula, prova, exercícios e atividades.
Para conseguir dar aula para 21 turmas, eu fiz 5 anos de curso, mais 5 anos de faculdade mais duas pós.
Uma semana - contando 7 dias - se eu trabalho 3, às vezes 4 ou 5... Me sobra tempo para brincar com os cachorros, dormir, descansar, ler, ir para academia e fazer o que eu bem entender.

(Mas isso era antes da quarentena.)
No dia que essa foto foi batida, eu ouvi a seguinte frase (depois de pedir ajuda com programa de edição de vídeo): "Você tem que se virar sozinha. É tão simples, não é possível que vc não entenda." (A frase pode não ser essa ao pé da letra, mas sem dúvida o contexto é).

Eu não sou Youtuber.
Eu não sou blogueirinha.
Eu não ganho minha renda fazendo entretenimento virtual para outras pessoas.

EU SOU PROFESSORA.

E eu estudei muito pra chegar até aqui... E não fiz nada disso sozinha.
Hoje, para gravar uma aula de 25 minutos, para UMA turma eu demoro - entre fazer a aula, gravar e editar - um dia, um dia e meio. Agora é só fazer as contas... Com 21 turmas, quanto tempo eu perco na frente do computador?

Some isso ao fato de eu não saber, e ter que procurar tutoriais na internet.
Some ainda, estarmos todos em casa. Então é criança correndo pra lá pra cá (muitos professores, têm filhos, vcs sabiam?), gente chamando, o escritório ou ambiente de trabalho - que é dividido com outras pessoas que também estão em home-office. 

Some ainda a pressão de trabalhar mais e ouvir, que talvez, você tenha seu salário reduzido porque os pais dos seus alunos falam que você, professor, está em casa ganhando para fazer videozinho... 

Some a pressão da própria quarentena.
Quanto tempo me sobra apenas para respirar? Porque sim, brincar com os cachorros, ler e descansar... Eu já desisti.
Exigir que a gente aprenda outras coisas do dia para noite é cruel.

E eu entendo que a roda não pode parar de girar, e que os alunos têm que ter aulas... E que a vida continua.
Eu não quero férias.

NÃO SÃO FÉRIAS!!!
Eu quero empatia.
Eu quero que as pessoas entendam, que a gente está correndo contra o tempo pra deixar tudo pronto prós filhos de vocês. Que estamos trabalhando o triplo.

E que estudamos muito para chegarmos a professores. Dar aula não foi do dia pra noite. 

Aluno, olhe pro seu professor com mais carinho.
Pai, mãe... Não diga que o professor do seu filho tá em casa sem fazer nada.

Familiares, entendam que nós vamos precisar de ajuda.
Escolas, valorizem seus profissionais.
A quarentena vai acabar. E qual é a lembrança que você quer levar dela?


Fonte do texto: Facebook - Kinha Fonteneles (29 de março de 2020)