segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Impossível é não Viver (José Luís Peixoto)

 

Se te quiserem convencer de que é impossível, diz-lhes que impossível é ficares calado, impossível é não teres voz. Temos direito a viver. Acreditamos nessa certeza com todas as forças do nosso corpo e, mais ainda, com todas as forças da nossa vontade. Viver é um verbo enorme, longo. Acreditamos em todo o seu tamanho, não prescindimos de um único passo do seu/nosso caminho.


Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal. O vidro não responde. Por isso, temos outros planos. Temos voz, tantas vozes; temos rosto, tantos rostos. As ruas hão-de receber-nos, serão pequenas para nós. Sabemos formar marés, correntes. Sabemos também que nunca nos foi oferecido nada. Cada conquista foi ganha milímetro a milímetro. 
Antes de estar à vista de toda a 
gente, prática e concreta, era sempre impossível, mas viver é acreditar. Temos direito à esperança. Esta vida pertence-nos.

Além disso, é magnífico estragar a festa aos poderosos. É divertido, saudável, faz bem à pele. Quando eles pensam que já nos distribuíram um lugar, que já está tudo decidido, que nos compraram com falinhas mansas e autocolantes, mostramos-lhes que sabemos gritar. Envergonhamo-los como as crianças de cinco anos envergonham os pais na fila do supermercado. Com a diferença grande de não sermos crianças de cinco anos e com a diferença imensa de eles não serem nossos pais porque os nossos pais, há quase quatro décadas atrás, tiveram de livrar-se dos pais deles. Ou, pelo menos, tentaram.

O único impossível é o que julgarmos que não somos capazes de construir. Temos mãos e um número sem fim de habilidades que podemos fazer com elas. Nenhum desses truques é deixá-las cair ao longo do corpo, guardá-las nos bolsos, estendê-las à caridade. Por isso, não vamos pedir, vamos exigir. Havemos de repetir as vezes que forem necessárias: temos direito a viver. Nunca duvidámos de que somos muito maiores do que o nosso currículo, o nosso tempo não é um contrato a prazo, não há recibos verdes capazes de contabilizar aquilo que valemos.

Vida, se nos estás a ouvir, sabe que caminhamos na tua direção. A nossa liberdade cresce ao acreditarmos e nós crescemos com ela e tu, vida, cresces também. Se te quiserem convencer, vida, de que é impossível, diz-lhe que vamos todos em teu resgate, faremos o que for preciso e diz-lhes que impossível é negarem-te, camuflarem-te com números, diz-lhes que impossível é não teres voz.

Fonte - José Luís Peixoto, in 'Abraço'
https://draft.blogger.com/blog/post/edit/4186393766032808113/7527732648210586887  


Sobre o Autor - José Luís Peixoto, nasceu na Vila de Galveias, no Alto Alentejo em 04 de setembro de 1974 é narrador, poeta e dramaturgo português. 

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Viver em Estado de Amor (José Tolentino Mendonça)

 

Respirar, viver não é apenas agarrar e libertar o ar, mecanicamente: é existir com, é viver em estado de amor. E, do mesmo modo, aderir ao mistério é entrar no singular, no afetivo. Deus é cúmplice da afetividade: omnipotente e frágil; impassível e passível; transcendente e amoroso; sobrenatural e sensível. A mais louca pretensão cristã não está do lado das afirmações metafísicas: ela é simplesmente a fé na ressurreição do corpo.

 

O amor é o verdadeiro despertador dos sentidos. As diversas patologias dos sentidos que anteriormente revisitámos mostram como, quando o amor está ausente, a nossa vitalidade hiberna. Uma das crises mais graves da nossa época é a separação entre conhecimento e amor. A mística dos sentidos, porém, busca aquela ciência que só se obtém amando. Amar significa abrir-se, romper o círculo do isolamento, habitar esse milagre que é conseguirmos estar plenamente conosco e com o outro. O amor é o degelo. Constrói-se como forma de hospitalidade (o poeta brasileiro Mário Quintana escreve que «o amor é quando a gente mora um no outro»), mas pede aos que o seguem uma desarmada exposição. Os que amam são, de certa maneira, mais vulneráveis. Não podem fazer de conta. Se apetece cantar na rua, cantam. Se lhes der para correr e rir debaixo de uma chuvada, fazem-no. Se tiverem subitamente de dançar em plena rua, iniciam um lento rodopio, sem qualquer embaraço, escutando uma música aos outros inaudível. E o amor expõe-nos também com maior intensidade aos sofrimentos. Na renovação do interesse e da entrega à vida que o amor em nós gera tocamos mais frequentemente a sua enigmática dialética: a sua estupenda vitalidade e a sua letalidade terrível. Mas, como dizia o romancista António Lobo Antunes, «há só uma maneira de não sofrer: é não amar». Mas não é o sofrimento inevitável a todo o amor que impede a vida. O obstáculo é, antes, o seu contrário: a apatia, a distração, o egoísmo, o cinismo.

 Fonte - https://www.citador.pt/textos/a/jose-tolentino-mendonca. José Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'


Sobre o Autor - José Tolentino Calaça de Mendonça, mais conhecido por José Tolentino de Mendonça, nasceu em Machico, Madeira, 15 de dezembro de 1965, é cardeal, poeta, professor universitário e teólogo. 
Atualmente é Arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, na Cúria Romana. No dia 5 de outubro de 2019 foi elevado a Cardeal pelo Papa Francisco.