terça-feira, 24 de agosto de 2021

Viver em Estado de Amor (José Tolentino Mendonça)

 

Respirar, viver não é apenas agarrar e libertar o ar, mecanicamente: é existir com, é viver em estado de amor. E, do mesmo modo, aderir ao mistério é entrar no singular, no afetivo. Deus é cúmplice da afetividade: omnipotente e frágil; impassível e passível; transcendente e amoroso; sobrenatural e sensível. A mais louca pretensão cristã não está do lado das afirmações metafísicas: ela é simplesmente a fé na ressurreição do corpo.

 

O amor é o verdadeiro despertador dos sentidos. As diversas patologias dos sentidos que anteriormente revisitámos mostram como, quando o amor está ausente, a nossa vitalidade hiberna. Uma das crises mais graves da nossa época é a separação entre conhecimento e amor. A mística dos sentidos, porém, busca aquela ciência que só se obtém amando. Amar significa abrir-se, romper o círculo do isolamento, habitar esse milagre que é conseguirmos estar plenamente conosco e com o outro. O amor é o degelo. Constrói-se como forma de hospitalidade (o poeta brasileiro Mário Quintana escreve que «o amor é quando a gente mora um no outro»), mas pede aos que o seguem uma desarmada exposição. Os que amam são, de certa maneira, mais vulneráveis. Não podem fazer de conta. Se apetece cantar na rua, cantam. Se lhes der para correr e rir debaixo de uma chuvada, fazem-no. Se tiverem subitamente de dançar em plena rua, iniciam um lento rodopio, sem qualquer embaraço, escutando uma música aos outros inaudível. E o amor expõe-nos também com maior intensidade aos sofrimentos. Na renovação do interesse e da entrega à vida que o amor em nós gera tocamos mais frequentemente a sua enigmática dialética: a sua estupenda vitalidade e a sua letalidade terrível. Mas, como dizia o romancista António Lobo Antunes, «há só uma maneira de não sofrer: é não amar». Mas não é o sofrimento inevitável a todo o amor que impede a vida. O obstáculo é, antes, o seu contrário: a apatia, a distração, o egoísmo, o cinismo.

 Fonte - https://www.citador.pt/textos/a/jose-tolentino-mendonca. José Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'


Sobre o Autor - José Tolentino Calaça de Mendonça, mais conhecido por José Tolentino de Mendonça, nasceu em Machico, Madeira, 15 de dezembro de 1965, é cardeal, poeta, professor universitário e teólogo. 
Atualmente é Arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, na Cúria Romana. No dia 5 de outubro de 2019 foi elevado a Cardeal pelo Papa Francisco.

Um comentário:

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