terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

DIÁLOGOS SOBRE AFETIVIDADE (Ivan Capelatto) (1)

 


FAMILIA? O que é isso?

Família é nosso lugar. Lugar de afetividade, de cuidado, de limite e de conflito. Lugar de amar, brigar, gritar, reparar, pedir desculpas, beijar abraçar. Lugar para criar raízes e assas.

Nós nos preparamos para fazer tudo na vida: se eu quero ser chefe na minha empresa, faço um curso; se eu quero ser médico, faço seis anos de faculdade, mais dois anos de residência. Mas não nos ensinam a ser pai e mãe. E um filho é para sempre.

 

Família é afetividade, que é conflito

A afetividade é o maior conflito humano, porque envolve o seguinte: eu amo muito meu filho e é com ele que eu mais brigo. Acontece com você?


1 - O que é ser família e quais são os conflitos que a envolvem?

Ivan Capelatto: O que é a família?  A família é um conjunto de pessoas que se unem pelo desejo de estar juntas, por uma dinâmica chamada afetividade. E a afetividade é o maior conflito, humano, porque envolve o seguinte: eu amo muito o meu filho e é com ele que mais brigo. É preciso suportar esse conflito, compreender esse conflito, porque, sabemos que, quando brigamos em casa, isso é sinal de amor, que podemos brigar, gritar e depois reparar, pedir desculpas, beijar, abraçar. É o conflito que nos mantém vivos.

Precisamos ter sempre clara em nossa cabeça essa ideia muito séria e, às vezes, difícil de entender, que é o conflito. Costumo dizer aos pais: imaginem que todos nós vivêssemos muito bem, como anjos, que fôssemos felizes o tempo todo, que não precisássemos cuidar de nada e de ninguém, não precisássemos comer, nem fazer cocô, nem xixi, nem sexo; nem dormir e nem escovar os dentes. Estaríamos mortos, porque perderíamos a razão da vida, que é o conflito.

Quando os pais, para evitar o conflito começam a deixar os filhos fazerem o que querem, terem autonomia - que, na verdade, não é autonomia -, começam a lidar com a morte. A ausência de conflito é a morte. Quando, para escapar de sua angústia, um jovem bebe álcool, usa droga, corre com o carro para sentir a adrenalina, enfim, foge do conflito com uma mudança cerebral, ele entra num processo de morte que chamamos de instinto de morte. Todas as vezes que escapamos dos conflitos sem tentar resolvê-los, começamos a morrer. Por isso, temos hoje tanta depressão na sociedade e depressão entre jovens e crianças. É porque os pais, às vezes, para evitar conflitos com os filhos, não impõem limites.

Limites são cuidados, cuidados geram conflitos e temos de lembrar que o maior significado da vida é o conflito. Todo dia, temos de ter conflito. Quando passamos um dia sem conflito, é preciso arranjar um, porque senão começamos a morrer. Basta ver as férias. Algumas pessoas adoecem nas férias, outras ficam irritadas quando saem de férias, porque acabou o conflito, o conflito do trabalho. Essa pessoa precisa criar um outro conflito e, às vezes, começa a implicar com o filho, com o marido, com a sujeira da casa. Os homens, quando se aposentam, às vezes, ficam irritantes, querem arrumar tudo em casa, pintar paredes, brigam com a mulher porque há coisas fora do lugar. Tudo porque acabou o conflito no trabalho. O ser humano não pode viver sem conflito. Só anjo - se é que ele existe - vive sem conflito.

 

2 - Como podemos conviver com tantas transformações e conflitos na família e, ainda assim, garantir a constituição da identidade do filho como indivíduo, formando-o para a vida?

É complicado responder isso em poucas palavras, mas para que se tenha uma ideia, a base do ser humano, ou melhor, a base para que uma pessoa se torne um ser humano são exatamente as referências que ela tem na vida. As referências só se constituem de forma afetiva. Não existem referências sociais para uma criança. As referências que ela usa para poder se ver, para poder se tornar um eu pensante, um eu falante, são referências afetivas. As referências afetivas são pessoas, são palavras e gestos que os outros usam na vida e que vão, de alguma forma, transformar-se em relação de cuidado ou de descuido para com a criança. A leitura que a criança faz desses gestos e dessas palavras, desses atos do adulto, seu cuidador, é que vai desencadear o processo que chamamos de identidade ou formação de identidade. Então, é na afetividade, isto é, na maneira como se fazem os vínculos entre o adulto e a criança que a identidade vai ser favorecida ou não.

 

3 - Em uma de suas palavras, você disse que a família dá “asas e raízes”. Gostaríamos que explicasse melhor o que isso quer dizer.

Asas e raízes são partes diferentes de objetos diferentes. As raízes são partes da planta que tiram do solo alimento e sustentação. As asas podem ser partes de animais ou objetos e são símbolo fundamental da liberdade e da autonomia. E esta é a função mais e importante dos pais: fazer com que os filhos tenham raízes na família e possam ter asas também. Quer dizer, a família superpõe essas luas ideias e é nela que buscamos uma referência, nossas raízes. E essa referência do sujeito é igual em qualquer lugar do mundo: é a referência afetiva. Pai, mãe ou alguém que substitua pai e mãe. Já a autonomia, são as asas.

O filho é o sujeito que tem de ir aos poucos se libertando dos pais, mas não das raízes. Sempre temos de ter para onde voltar e sempre voltamos para o lugar afetivo. Por isso, a função fundamental da família é ser raiz e, ao mesmo tempo, oferecer oportunidade autonomia, sabendo que essa relação nunca se cinde, nunca se quebra, nunca se separa. Precisamos ter asas e raízes, ou seja, voar com os pés no chão.

O que tem acontecido é que os pais começaram a criar um mito muito perigoso, que é a ideia da liberdade. Eles não têm dado raízes e não têm dado asas. Têm praticado uma coisa perigosa chamada negligência, que é, às vezes, ter um filho de nove anos e não saber onde ele está ou um menino de 15 anos e não conseguir mostrar limites para ele, não conseguir saber o que ele faz, com quem está, onde vai, o que pensa a respeito da vida.

Atualmente, os pais imaginam que os filhos, por já saberem tanto sobre a vida, são capazes de se cuidar. Sabemos que uma pessoa só é capaz de se cuidar a partir dos 21 anos de idade, quando o cérebro amadurece. Então, até os 21 anos, precisamos de raízes. A negligência a que me referi antes quer dizer: "Mãe, eu vou sair. Ao que a mãe responde: "Tá bom!"

A negligência não é nem raiz nem asa. A negligência é abandono. É um filho sem asas que pensa que está voando; daí, ele cai.

 

4 - Na sua opinião, em que idade o filho precisa mais da mãe?

Quanto mais velho, mais ele precisa de mãe. Assim, quando for casado, tiver filhos, ainda precisará de mãe. O tempo todo os filhos precisam das mães, precisam de cuidado. Todos temos de ter referência. Quando não temos referência na família, buscamos fora. Nenhum de nós é divino o suficiente, ou Deus, para poder ficar sem referência.

 

5 - Quais as consequências, para uma criança, quando o pai fala uma coisa e a mãe fala outra?

Quando o pai fala uma coisa e a mãe fala outra, ocorre dois problemas: a criança vai começar a se aliar a quem dá menos limites e também a se sentir culpada em relação àquele que dá limite. Temos um duplo problema e, por isso, os pais precisam tomar cuidado.


SOBRE O AUTOR - IVAN CAPELATTO - Natural de Rio Claro,
SP, nascido a 9 de Janeiro de 1950. Psicólogo e psicanalista; Mestre em Psicologia Clínica pela PUCCAMP, Formou-se em Psicologia Clínica pela PUC-Campinas, onde também fez seu mestrado, ainda na área clínica. Psicoterapeuta de crianças, adolescentes e adultos desde 1973. Palestrante convidado do Café
Filosófico (Instituto CPFL).


Fonte - CAPELATTO, Ivan. Diálogos sobre afetividade. 6ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.





terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Sobre Autoestima (Flávio Gikovate)

 

Só existe autoestima quando uma pessoa vive de acordo com suas ideias, sem ofender o código de valores que ela construiu ao longo da vida. Uma pessoa para quem a honestidade é fundamental poderá ficar rica se aceitar suborno, mas sua autoestima cairá, inevitavelmente. Não é possível alguém gostar de si mesmo, ter um bom juízo de si, se estiver agindo em desacordo com seus princípios.

 

Os valores de cada pessoa, assim como os de cada sociedade, variam muito e dependem fundamentalmente do ambiente em que ela cresceu. Nos primeiros anos de vida, incorporamos essas normas com o objetivo de agradar aos adultos que nos são importantes. Aprendemos seus valores e os adotamos, porque este é o caminho para sermos amados por eles. Os adultos usam essa necessidade das crianças de serem protegidas e acariciadas como instrumento para educá-las, ou seja, transmitir à nova geração as normas daquela comunidade. Mas isso é apenas o princípio do processo. A partir de um certo ponto do nosso desenvolvimento, passamos a contestar os valores que nos foram impostos pela educação. Isto pode ser feito de um modo bastante estabanado e grosseiro, negando, apenas por negar, tudo o que nos ensinaram (e são muitos os adolescentes que agem assim). Entretanto, também podemos reavaliar nossos princípios de um modo mais sofisticado, comparando-os com outros pontos de vista ou submetendo-os a uma experimentação na vida prática.

 

Se fomos educados, por exemplo, a não transigir, tornando-nos pessoas rígidas e prepotentes, isso pode nos trazer muitos inimigos e afastar as pessoas de quem gostamos. A prática da vida nesse caso poderá nos ensinar a ter mais “jogo de cintura”, ou seja, a afrouxar um pouco mais os nossos critérios quanto à liberdade e aos direitos de cada pessoa. Sempre que mudarmos nossos valores devemos conseguir mudar também nossa conduta. O objetivo disso é fazer com que possamos viver de acordo com nossas ideias, condição indispensável para uma autoestima positiva. Mas outra condição se impõe para uma boa autoestima: levar uma vida produtiva, em constante evolução.

 

Se uma pessoa gosta de cozinhar, ela tenderá a se dedicar a essa atividade. Será capaz de avaliar seus avanços por meio da reação das pessoas que provam sua comida e não adianta negarmos: somos dependentes das reações dos que nos cercam e nos são queridos. Os elogios reforçarão suas convicções de que está indo pelo caminho certo, enquanto as críticas indicarão a necessidade de correção de rota. Com o passar do tempo e o crescer da experiência, ela saberá avaliar a qualidade de sua comida por si mesma, tornando-se menos dependente do julgamento dos outros. Sua autoavaliação vai se tornando mais importante que a dos outros. Sua autoestima vai se cristalizando em um patamar alto, sólido e independente do ambiente.

 

Mas é importante ressaltar que esta imagem positiva de si mesmo não pode ser construída do nada. Não adianta a pessoa se olhar todos os dias no espelho e dizer: “Eu sou uma pessoa legal, mereço as coisas boas da vida, eu me amo”. Agir assim é acreditar que se pode enganar a si mesmo com discursos bonitos e falsos. Precisamos agir sempre de acordo com as nossas convicções, levar uma vida produtiva e nos aprimorar naquilo que fazemos.

 

Não importa qual seja a atividade, precisamos nos relacionar com o nosso meio e receber dele sinais positivos de que nossa ação é boa e que está em permanente evolução. Se uma pessoa não faz nada, não se dedica a nenhum tipo de atividade, não terá a menor chance de ter uma boa autoestima. Ela não se testa para saber qual é o seu valor e a dúvida puxa para baixo a autoavaliação. E de nada adianta colocar uma máscara e sair por aí com ares de quem “se ama e muito”. Isso não engana ninguém!



Sobre o Autor - Flávio Gikovate foi um médico psiquiatra, psicoterapeuta e escritor brasileiro. Nasceu em 11 de janeiro de 1943 - São Paulo. Faleceu em 13 de outubro de 2016 - São Paulo. 

GRIFOS - feitos por mim.

FONTE - Texto de Flávio Gikovate IN: Livro: "MUDAR - Caminhos para a transformação verdadeira"