FAMILIA? O que é isso?
Família é nosso lugar. Lugar de afetividade, de
cuidado, de limite e de conflito. Lugar de amar, brigar, gritar, reparar, pedir
desculpas, beijar abraçar. Lugar para criar raízes e assas.
Nós nos preparamos para fazer tudo na vida: se
eu quero ser chefe na minha empresa, faço um curso; se eu quero ser médico,
faço seis anos de faculdade, mais dois anos de residência. Mas não nos ensinam
a ser pai e mãe. E um filho é para sempre.
Família é afetividade, que é conflito
A afetividade é o maior conflito humano, porque
envolve o seguinte: eu amo muito meu filho e é com ele que eu mais brigo. Acontece
com você?
1 - O que é ser família e quais são os conflitos que a envolvem?
Ivan
Capelatto: O que é a família? A família
é um conjunto de pessoas que se unem pelo desejo de estar juntas, por uma
dinâmica chamada afetividade. E a afetividade é o maior conflito, humano,
porque envolve o seguinte: eu amo muito o meu filho e é com ele que mais brigo.
É preciso suportar esse conflito, compreender esse conflito, porque, sabemos
que, quando brigamos em casa, isso é sinal de amor, que podemos brigar, gritar
e depois reparar, pedir desculpas, beijar, abraçar. É o conflito que nos mantém
vivos.
Precisamos
ter sempre clara em nossa cabeça essa ideia muito séria e, às vezes, difícil de
entender, que é o conflito. Costumo dizer aos pais: imaginem que todos nós
vivêssemos muito bem, como anjos, que fôssemos felizes o tempo todo, que não
precisássemos cuidar de nada e de ninguém, não precisássemos comer, nem fazer
cocô, nem xixi, nem sexo; nem dormir e nem escovar os dentes. Estaríamos
mortos, porque perderíamos a razão da vida, que é o conflito.
Quando
os pais, para evitar o conflito começam a deixar os filhos fazerem o que
querem, terem autonomia - que, na verdade, não é autonomia -, começam a lidar
com a morte. A ausência de conflito é a morte. Quando, para escapar de sua
angústia, um jovem bebe álcool, usa droga, corre com o carro para sentir a
adrenalina, enfim, foge do conflito com uma mudança cerebral, ele entra num
processo de morte que chamamos de instinto de morte. Todas as
vezes que escapamos dos conflitos sem tentar resolvê-los, começamos a morrer.
Por isso, temos hoje tanta depressão na sociedade e depressão entre jovens e
crianças. É porque os pais, às vezes, para evitar conflitos com os filhos, não
impõem limites.
Limites
são cuidados, cuidados geram conflitos e temos de lembrar que o maior
significado da vida é o conflito. Todo dia, temos de ter conflito. Quando
passamos um dia sem conflito, é preciso arranjar um, porque senão começamos a
morrer. Basta ver as férias. Algumas pessoas adoecem nas férias, outras ficam
irritadas quando saem de férias, porque acabou o conflito, o conflito do
trabalho. Essa pessoa precisa criar um outro conflito e, às vezes, começa a
implicar com o filho, com o marido, com a sujeira da casa. Os homens, quando se
aposentam, às vezes, ficam irritantes, querem arrumar tudo em casa, pintar
paredes, brigam com a mulher porque há coisas fora do lugar. Tudo porque acabou
o conflito no trabalho. O ser humano não pode viver sem conflito. Só anjo - se
é que ele existe - vive sem conflito.
2
- Como podemos conviver com tantas transformações e conflitos na família e,
ainda assim, garantir a constituição da identidade do filho como indivíduo,
formando-o para a vida?
É
complicado responder isso em poucas palavras, mas para que se tenha uma ideia,
a base do ser humano, ou melhor, a base para que uma pessoa se torne um ser
humano são exatamente as referências que ela tem na vida. As referências só se
constituem de forma afetiva. Não existem referências sociais para uma criança.
As referências que ela usa para poder se ver, para poder se tornar um eu pensante,
um eu falante, são referências afetivas. As referências afetivas
são pessoas, são palavras e gestos que os outros usam na vida e que vão, de
alguma forma, transformar-se em relação de cuidado ou de descuido para com a
criança. A leitura que a criança faz desses gestos e dessas palavras, desses
atos do adulto, seu cuidador, é que vai desencadear o processo que chamamos de
identidade ou formação de identidade. Então, é na afetividade, isto é, na maneira
como se fazem os vínculos entre o adulto e a criança que a identidade vai ser
favorecida ou não.
3
- Em uma de suas palavras, você disse que a família dá “asas e raízes”.
Gostaríamos que explicasse melhor o que isso quer dizer.
Asas
e raízes são partes diferentes de objetos diferentes. As raízes são partes da
planta que tiram do solo alimento e sustentação. As asas podem ser partes de
animais ou objetos e são símbolo fundamental da liberdade e da autonomia. E
esta é a função mais e importante dos pais: fazer com que os filhos tenham
raízes na família e possam ter asas também. Quer dizer, a família superpõe
essas luas ideias e é nela que buscamos uma referência, nossas raízes. E essa
referência do sujeito é igual em qualquer lugar do mundo: é a referência
afetiva. Pai, mãe ou alguém que substitua pai e mãe. Já a autonomia, são as
asas.
O
filho é o sujeito que tem de ir aos poucos se libertando dos pais, mas não das
raízes. Sempre temos de ter para onde voltar e sempre voltamos para o lugar
afetivo. Por isso, a função fundamental da família é ser raiz e, ao mesmo
tempo, oferecer oportunidade autonomia, sabendo que essa relação nunca se
cinde, nunca se quebra, nunca se separa. Precisamos ter asas e raízes, ou seja,
voar com os pés no chão.
O
que tem acontecido é que os pais começaram a criar um mito muito perigoso, que
é a ideia da liberdade. Eles não têm dado raízes e não têm dado asas. Têm
praticado uma coisa perigosa chamada negligência, que é, às vezes, ter um filho
de nove anos e não saber onde ele está ou um menino de 15 anos e não conseguir
mostrar limites para ele, não conseguir saber o que ele faz, com quem está,
onde vai, o que pensa a respeito da vida.
Atualmente,
os pais imaginam que os filhos, por já saberem tanto sobre a vida, são capazes
de se cuidar. Sabemos que uma pessoa só é capaz de se cuidar a partir dos 21
anos de idade, quando o cérebro amadurece. Então, até os 21 anos, precisamos de
raízes. A negligência a que me referi antes quer dizer: "Mãe, eu vou sair.
Ao que a mãe responde: "Tá bom!"
A
negligência não é nem raiz nem asa. A negligência é abandono. É um filho sem
asas que pensa que está voando; daí, ele cai.
4
- Na sua opinião, em que idade o filho precisa mais da mãe?
Quanto
mais velho, mais ele precisa de mãe. Assim, quando for casado, tiver filhos,
ainda precisará de mãe. O tempo todo os filhos precisam das mães, precisam de
cuidado. Todos temos de ter referência. Quando não temos referência na família,
buscamos fora. Nenhum de nós é divino o suficiente, ou Deus, para poder ficar
sem referência.
5
- Quais as consequências, para uma criança, quando o pai fala uma coisa e a mãe
fala outra?
Quando o pai fala uma coisa e a mãe fala outra, ocorre dois problemas: a criança vai começar a se aliar a quem dá menos limites e também a se sentir culpada em relação àquele que dá limite. Temos um duplo problema e, por isso, os pais precisam tomar cuidado.
Fonte - CAPELATTO, Ivan. Diálogos sobre afetividade. 6ª ed.
Campinas, SP: Papirus, 2012.
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