quarta-feira, 19 de abril de 2023

O último discurso de "O Grande Ditador" de Charles Chaplin(**)

 

(**) O primeiro filme falado de Charles Chaplin foi “The Great Dictator” (1940) (O Grande Ditador), lançado no dia 15 de outubro de 1940, o filme faz uma sátira ao nazismo e ao fascismo.

 

"Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. 

Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma do homem... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas duas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-se muito mais. A próxima natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia ... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem os homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquina!

Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos.

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou um grupo de homens, mas dos homens todos! Estás em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos.

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergues os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos"


O último discurso de "O Grande Ditador" de Charles Chaplin

FONTE - https://www.pensador.com/textos_charles_chaplin/ 


Sobre o autor - Charles Chaplin (1889-1977) foi um ator, dançarino, diretor e produtor inglês. Também conhecido por "Carlitos". Foi o mais famoso artista cinematográfico da era do cinema mudo. Ficou notabilizado por suas mímicas e comédias do gênero pastelão.

O personagem  que mais marcou sua carreira foi "O Vagabundo" (The Tramp), um andarilho pobretão com as maneiras refinadas e a dignidade de um cavalheiro, vestido com um casaco esgarçado, calças e sapatos desgastados e mais largos que o seu número, um chapéu coco, uma bengala e seu marcante bigode.

Infância

Charles Spencer Chaplin Jr. nasceu em Londres, Inglaterra, no dia 16 de abril de 1889. Seu pai Charles Spencer Chaplin, era vocalista e ator e sua mãe Hannah Chaplin, era cantora e atriz. Seus pais se separam antes de Charles completar três anos. Em 1894 com apenas cinco anos Chaplin subiu ao palco e cantou a música "Jack Jones".

Seu pai era alcoólatra e tinha pouco contato com o filho. Morreu de cirrose hepática em 1901. Sua mãe foi internada em um asilo e Chaplin foi levado para um orfanato e depois transferido para uma escola de crianças pobres.

Primeiro Filme de Sucesso de Charles Chaplin

Em 1908, com 19 anos, Charles Chaplin começou a trabalhar no teatro de variedades fazendo sucesso como mímico. Em 1910, em uma turnê nos Estados Unidos com a trupe de Fred Karmo, foi visto por um produtor cinematográfico e, em 1913 já estreava como ator de cinema da Keystone Film Company.

No final de 1914, Chaplin foi contratado pela Essanay, recebendo um alto salário e sua própria unidade de produção. Em 1915, ele produziu a comédia “The Tramp” (O Vagabundo) quando criou o seu famoso personagem – "o vagabundo Carlitos".

O Vagabundo - 1915

Carlitos era um andarilho, pobretão, com maneiras refinadas e a dignidade de um cavalheiro, vestido com casaco esgarçado, calças e sapatos desgastados e mais largo que o seu número, um chapéu-coco, uma bengala e seu marcante bigodinho. O personagem humilde e galante passou a ser a figura central de diversos filmes de Chaplin.

The Kid (O Garoto,1921

Conta a história de um bebê que acaba ficando aos cuidados de um vagabundo.

O Circo -1928

Em 1927, com a chegada do cinema falado, Charles Chaplin se opôs ao novo modelo de fazer cinema e, continuou a criar obras-primas baseadas em suas mímicas. São dessa época: City Lights (Luzes da Cidade, 1931)) que conta a história do vagabundo que se finge de milionário para impressionar uma florista cega, por qual se apaixonou. Modern Times (Tempos Modernos, 1936) que satiriza a mecanização da modernidade.

O Grande Ditador - 1940

O filme recebeu cinco indicações ao Oscar em 1941, nas categorias de melhor filme, melhor ator para Charles Chaplin, melhor roteiro original, melhor trilha sonora e melhor ator coadjuvante para Jack Oakle.

Vida Pessoal

Charles Chaplin teve uma vida sentimental intensa, casou-se quatro vezes, os três primeiros com estrelas de seus filmes, das quais se divorciu com escândalos: Milded Harris, Lita Grey e Paulette Goddard. Com 54 anos, conheceu Oona, a filha do teatrólogo irlandês Eugene O'Neill, de apenas 18 anos, com quem se casou, teve seis filhos e com ela viveu até o fim da vida.

Fuga dos Estados Unidos

Apesar da grande popularidade de Charles Chaplin e do sucesso de seus filmes, muitas de suas ideias eram incompatíveis com os setores conservadores da sociedade norte-americana. Seu filme “Shoulder Arms” (Ombros Armas!) de 1918, provocou protestos de pretensos patriotas. Acusado de comunismo, foi perseguido pelo Macarthismo. Em 1952 abandonou os Estados Unidos, indo morar Corsier-sur-Vevey, na Suíça.

Em 1972, Charles Chaplin voltou aos Estados Unidos para receber o Prêmio Especial da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Em 1975, foi agraciado pela Rainha Elizabeth II com o título de Sir.

Charles Chaplin faleceu em Corsier-sur-Vevey, Suíça, no dia 25 de dezembro de 1977.

Filmes de Charles Chaplin

Carlitos Casanova, 1914

O Vagabundo, 1915

O Imigrante, 1917

Vida de Cachorro,1918

Carlitos nas Trincheiras, 1918

Idílio No Campo, 1919

O Garoto, 1921

Pastor de Almas, 1923

Casamento de Luxo, 1923

Em busca do Ouro, 1925

O Circo, 1928

Luzes da Cidade, 1931

Tempos Modernos, 1936

O Grande Ditador, 1940

Monsieur Verdoux, 1947

Luzes da Ribalta, 1952

Um Rei em Nova Iorque, 1957

A Condessa de Hong Kong, 1967

quarta-feira, 5 de abril de 2023

“É assim que acontece a bondade”. Rubem Alves

 

“Se te perguntarem quem era essa que às areias e aos gelos quis ensinar a primavera…”: é assim que Cecília Meireles inicia um de seus poemas. Ensinar primavera às areias e aos gelos é coisa difícil. Gelos e areias nada sabem sobre primaveras. Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela. O mundo seria melhor. Mas como ensiná-la?

 

Seria possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo? Como, se ele não ouve? E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a um cego? De que pedagogia irei me valer para comunicar cores e formas a quem não vê? Há coisas que não podem ser ensinadas. Há coisas que estão além das palavras. Os cientistas, os filósofos e os professores são aqueles que se dedicam a ensinar as coisas que podem ser ensinadas. Coisas que são ensinadas são aquelas que podem ser ditas. Sobre a solidariedade muitas coisas podem ser ditas. Por exemplo: eu acho possível desenvolver uma psicologia da solidariedade. Acho também possível desenvolver uma sociologia da solidariedade. E, filosoficamente, uma ética da solidariedade… Mas o saberes científicos e filosóficos da solidariedade não ensinam a solidariedade, da mesma forma como a crítica da música e da pintura não ensina às pessoas a beleza da música e da pintura. A solidariedade, como a beleza, é inefável – está além das palavras.

 

Palavras que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser engaiolado. Ela não pode ser dita. A solidariedade pertence a uma classe de pássaros que só existem em voo. Engaiolados, esses pássaros morrem.

A beleza é um desses pássaros. A beleza está além das palavras. Walt Whitman tinha a consciência disso quando disse: “Sermões e lógicas jamais convencem. O peso da noite cala bem mais fundo a alma…”. Ele conhecia os limites das suas próprias palavras. E Fernando Pessoa sabia que aquilo que o poeta quer comunicar não se encontra nas palavras que ele diz; antes, aparece nos espaços vazios que se abrem entre elas, as palavras. Nesse espaço vazio se ouve uma música. Mas essa música – de onde vem se ela se não foi o poeta que a tocou?

 

Não é possível fazer uma prova sobre a beleza porque ela não é um conhecimento. Tampouco é possível comandar a emoção diante da beleza. Somente atos podem ser comandados. “Ordinário! Marche!”, o sargento ordena. Os recrutas obedecem. Marcham. À ordem segue-se o ato. Mas sentimos que não podem ser comandados. Não poso ordenar que alguém sinta a beleza que estou sentindo.

 

O que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora: astronomia, física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras.

 

Mas há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram dentro do corpo. Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera…

 

Sim, sim! Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se

encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes – lembre-se da história da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também não brotar. Tudo depende… As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas… De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam. Nos jardins há pragas: tiriricas, picões…

 

Uma dessas sementes é a “solidariedade”. A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora, poderia ser ensinada e produzida. A solidariedade é uma entidade do mundo interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente…

 

Veja o ipê florido! Nasceu de uma semente. Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica, nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça. Angelus Silesius, místico antigo, tem um verso que diz: “A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce”. O ipê floresce porque floresce. Seu florescer é um simples transbordar natural da sua verdade.

 

A solidariedade é como um ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: “Seja solidário!”. A solidariedade acontece como um simples transbordamento: as fontes transbordam… Da mesma forma como o poema é um transbordamento da alma do poeta e a canção, um transbordamento da alma do compositor…

 

Já disse que solidariedade é um sentimento. É esse o sentimento que nos torna mais humanos. É um sentimento estranho, que perturba nossos próprios sentimentos. A solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho de suas balas. Eu e a criança – dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável esse sentimento imaginado se aloja junto aos meus próprios sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos. Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar. Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre. Expande-se. Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa, nem por mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos. A solidariedade é uma forma visível do amor. Pela magia do sentimento de solidariedade, meu corpo passa a ser morada de outro. É assim que acontece a bondade.

 

Mas fica pendente a pergunta inicial: como ensinar primavera a gelos e areias? Para isso as palavras do conhecimento são inúteis. Seria necessário fazer nascer ipês no meio dos gelos e das areias! E eu só conheço uma palavra que tem esse poder: a palavra dos poetas. Ensinar solidariedade? Que se façam ouvir as palavras dos poetas nas igrejas, nas escolas, nas empresas, nas casas, na televisão, nos bares, nas reuniões políticas, e, principalmente, na solidão…".



FONTE - Rubem Alves, no livro “As melhores crônicas de Rubem Alves”

 

SOBRE O AUTOR - Rubem Alves (1933 a 2014) foi um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros religiosos, educacionais , existenciais e infantis. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).