“Se te perguntarem quem era essa que às areias e aos gelos
quis ensinar a primavera…”: é assim que Cecília Meireles inicia um de seus
poemas. Ensinar primavera às areias e aos gelos é coisa difícil. Gelos e areias
nada sabem sobre primaveras. Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a
quem nada sabe sobre ela. O mundo seria melhor. Mas como ensiná-la?
Seria possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um
surdo? Como, se ele não ouve? E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a
um cego? De que pedagogia irei me valer para comunicar cores e formas a quem
não vê? Há coisas que não podem ser ensinadas. Há coisas que estão além das
palavras. Os cientistas, os filósofos e os professores são aqueles que se
dedicam a ensinar as coisas que podem ser ensinadas. Coisas que são ensinadas
são aquelas que podem ser ditas. Sobre a solidariedade muitas coisas podem ser
ditas. Por exemplo: eu acho possível desenvolver uma psicologia da
solidariedade. Acho também possível desenvolver uma sociologia da
solidariedade. E, filosoficamente, uma ética da solidariedade… Mas o saberes
científicos e filosóficos da solidariedade não ensinam a solidariedade, da
mesma forma como a crítica da música e da pintura não ensina às pessoas a
beleza da música e da pintura. A solidariedade, como a beleza, é inefável –
está além das palavras.
Palavras que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser engaiolado. Ela não pode ser dita. A solidariedade pertence a uma classe de pássaros que só existem em voo. Engaiolados, esses pássaros morrem.
A beleza é um desses pássaros. A beleza está além das
palavras. Walt Whitman tinha a consciência disso quando disse: “Sermões e
lógicas jamais convencem. O peso da noite cala bem mais fundo a alma…”. Ele
conhecia os limites das suas próprias palavras. E Fernando Pessoa sabia que
aquilo que o poeta quer comunicar não se encontra nas palavras que ele diz;
antes, aparece nos espaços vazios que se abrem entre elas, as palavras. Nesse
espaço vazio se ouve uma música. Mas essa música – de onde vem se ela se não
foi o poeta que a tocou?
Não é possível fazer uma prova sobre a beleza porque ela não
é um conhecimento. Tampouco é possível comandar a emoção diante da beleza.
Somente atos podem ser comandados. “Ordinário! Marche!”, o sargento ordena. Os
recrutas obedecem. Marcham. À ordem segue-se o ato. Mas sentimos que não podem
ser comandados. Não poso ordenar que alguém sinta a beleza que estou sentindo.
O que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de
fora: astronomia, física, química, gramática, anatomia, números, letras,
palavras.
Mas há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram
dentro do corpo. Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera…
Sim, sim! Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se
encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes – lembre-se da história da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também não brotar. Tudo depende… As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas… De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam. Nos jardins há pragas: tiriricas, picões…Uma dessas sementes é a “solidariedade”. A solidariedade não
é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias,
dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora, poderia ser
ensinada e produzida. A solidariedade é uma entidade do mundo interior.
Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A solidariedade tem
de brotar e crescer como uma semente…
Veja o ipê florido! Nasceu de uma semente. Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica, nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça. Angelus Silesius, místico antigo, tem um verso que diz: “A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce”. O ipê floresce porque floresce. Seu florescer é um simples transbordar natural da sua verdade.
A solidariedade é como um ipê: nasce e floresce. Mas não em
decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: “Seja solidário!”.
A solidariedade acontece como um simples transbordamento: as fontes
transbordam… Da mesma forma como o poema é um transbordamento da alma do poeta
e a canção, um transbordamento da alma do compositor…
Já disse que solidariedade é um sentimento. É esse o
sentimento que nos torna mais humanos. É um sentimento estranho, que perturba
nossos próprios sentimentos. A solidariedade me faz sentir sentimentos que não
são meus, que são de um outro. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo
balas num semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho de suas balas. Eu e
a criança – dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela,
estremeço: algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo. E então,
por uma magia inexplicável esse sentimento imaginado se aloja junto aos meus
próprios sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no
meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se
coloca no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos. Foram-se a leveza
e a alegria que me faziam cantar. Agora, são os sentimentos daquele menino que
estão dentro de mim. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado
pela pele que o cobre. Expande-se. Ele está agora ligado a um outro corpo que
passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem
por convicção religiosa, nem por mandamento ético. É o jeito natural de ser do
meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito
de Jesus de que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos. A
solidariedade é uma forma visível do amor. Pela magia do sentimento de
solidariedade, meu corpo passa a ser morada de outro. É assim que acontece a
bondade.
Mas fica pendente a pergunta inicial: como ensinar primavera
a gelos e areias? Para isso as palavras do conhecimento são inúteis. Seria
necessário fazer nascer ipês no meio dos gelos e das areias! E eu só conheço
uma palavra que tem esse poder: a palavra dos poetas. Ensinar solidariedade?
Que se façam ouvir as palavras dos poetas nas igrejas, nas escolas, nas
empresas, nas casas, na televisão, nos bares, nas reuniões políticas, e,
principalmente, na solidão…".
FONTE - Rubem Alves, no livro “As melhores crônicas de Rubem
Alves”
SOBRE O AUTOR - Rubem Alves (1933 a 2014) foi um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros religiosos, educacionais , existenciais e infantis. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
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