O LIVRO QUE ERA UMA CASA, A CASA QUE ERA UM PAÍS (Mia Couto)
As
palavras proferidas por Mia Couto na cerimônia de recebimento do
Título de Doutor Honoris Causa em Humanidades na especialidade de
Literatura, em novembro de 2015, em Maputo, pela Universidade
Politécnica, nos possibilitam reflexões sobre vários aspectos do
SER HUMANO e das várias dimensões que devem estar presentes na arte
de “comviver”.
Aqui
destaco parte de suas palavras naquele momento:
"[...]. Um dia destes, um jovem funcionário propôs-me o pagamento de um
suborno para emitir um
documento. Aquilo não correu bem porque ele, num certo momento, reconheceu-me e recuou nos seus propósitos.
documento. Aquilo não correu bem porque ele, num certo momento, reconheceu-me e recuou nos seus propósitos.
Para
se redimir o jovem explicou-se da seguinte maneira:
-
Sabe, senhor Mia, eu gostava muito de ser uma pessoa honesta, mas
falta-me o patrocínio.
Não
será exatamente o patrocínio que nos afasta da honestidade. O que
nos falta é criar uma narrativa que prove que a honestidade vale a
pena. Houve quem confundisse o combate contra a pobreza absoluta pelo
combate pela ganância absoluta. Sugeriram-nos que a autoestima pode
ser resolvida pela ostentação do luxo.
Uma
certa narrativa quer ainda provar que vale a pena mentir, que vale a
pena roubar, e que vale a pena tudo menos ser honesto e trabalhar.
Aliás, a palavra “trabalho” suscita fortíssimas alergias.
Podem-se ter negócios, podem-se ter projetos. Mas ter um trabalho
isso é que nunca. Que o trabalho leva muito tempo e, além disso, dá
muito trabalho. Mas, no fundo, todos sabemos: enriquecer rápido e
sem esforço só pode ser feito de uma maneira: roubando,
vigarizando, corrompendo e sendo corrompido. Não existe, no mundo,
inteiro, uma outra receita.
Preocupa-nos
que os nossos estudantes entrem para universidade com fraco
desempenho acadêmico. Pois eu acho mais preocupante ainda que os
nossos jovens cresçam sem referências morais.
Estamos
empenhados em assuntos como o empreendedorismo como se todos os
nossos filhos estivessem destinados a ser empresários. Ocupamos em
cursos de liderança como se a próxima geração fosse toda
destinada a criar políticos e líderes. Não vejo muito interesse em
preparar os nossos filhos em serem simplesmente boas pessoas, bons
cidadãos do seu país, bons cidadãos do mundo.
Escrevi
uma vez que a maior desgraça de um país pobre é que, em vez de
produzir riqueza, vai produzindo ricos. Poderia hoje acrescentar que
outro problema das nações pobres é que, em vez de produzirem
conhecimento, produzem doutores (até eu agora já fui promovido..,).
Em vez de promover pesquisa, emitem diplomas. Outra desgraça de uma
nação pobre é o modelo único de sucesso que vendem às novas
gerações. E esse modelo está bem patente nos vídeo-clips que
passam na nossa televisão: um jovem rico e de maus modos, rodeado de
carros de luxo e de meninas fáceis, um jovem que pensa que é
americano, um jovem que odeia os pobres porque eles lhes fazem
lembrar a sua própria origem.
É
preciso remar contra toda essa corrente. É preciso mostrar que vale
a pena ser honesto. É preciso criar histórias em que o vencedor
não
é o mais poderoso. Histórias em que quem foi escolhido não foi o
mais arrogante mas o mais tolerante, aquele que mais escuta os
outros. Histórias em que o herói não é o lambe-botas, nem o
chico-esperto. Talvez essas histórias sejam o tal patrocínio que
faltou ao nosso jovem funcionário.Tudo isto é urgente e imperioso. Porque nós estamos na eminência de desacreditar de nós mesmos. Todos nós já escutamos de alguém a seguinte desistência: não vale a pena, nós somos assim. Nós somos cabritos à espera de ser amarrados num qualquer pasto. Estamos a aprender a desqualificarmo-nos. Estamos a replicar o racismo que outros inventaram para nos despromover como um povo de qualidade moral inferior.
E vou
terminar partilhando um episódio real que foi vivido por colegas
meus. Depois da Independência, um programa de controlo dos caudais
dos rios foi instalado em Moçambique. Formulários foram
distribuídos pelas estações hidrológicas espalhadas pelo país. A
guerra de desestabilização eclodiu e esse projeto, como tantos
outros, foi interrompido por mais de uma dúzia de anos. Quando a Paz
se reinstalou, em 1992, as autoridades relançaram esse programa
acreditando que, em todo o lado, era necessário recomeçar do zero.
Contudo, uma surpresa esperava a brigada que visitou uma isolada
estação higrométrica no interior da Zambézia. O velho guarda
tinha-se mantido ativo e cumprira, com zelo diário, a sua missão
durante todos aqueles anos. Esgotados os formulários, ele passou a
usar as paredes da estação para registrar, a carvão, os dados
hidrológicos. No interior e exterior, as paredes estavam cobertas de
anotações e a velha casa parecia um imenso livro de pedra. Ao
receber a brigada o velho guarda estava à porta a estação, com
orgulho de quem cumpriu dia após dia: acabou-se o papel, disse ele,
mas os meus dedos não acabaram. Este é o meu livro. E apontou para
a casa. [...]”
Imagens
da Internet.
Sobre
o autor - Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto,
é um escritor e biólogo moçambicano. Nasceu em 5 de julho de 1955
– Beira,
Moçambique. Mia Couto é um “escritor da terra”,
escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a
própria natureza humana na sua relação umbilical com a terra. A
sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos,
confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da
beleza interna das coisas. Cada palavra inventada como que adivinha a
secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma
outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia
Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida um
pouco surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve
de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o mundo vivo das
histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o
único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de
Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, sendo o sexto
ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de
Sousa.
Mia Couto nasceu 1 dia depois de mim, mas dez anos antes. Obrigado, Sônia, por me chamar a atenção sobre este autor que parece muito interessante. Vou procurar ler mais da obra dele. Bjs.
ResponderExcluirEle realmente tem muitos textos interessantes.
ExcluirVale a pena!
Grata, pelo teu comentário.