segunda-feira, 13 de novembro de 2017

É preciso remar contra a corrente... É preciso mostrar que vale...


O LIVRO QUE ERA UMA CASA, A CASA QUE ERA UM PAÍS (Mia Couto)


As palavras proferidas por Mia Couto na cerimônia de recebimento do Título de Doutor Honoris Causa em Humanidades na especialidade de Literatura, em novembro de 2015, em Maputo, pela Universidade Politécnica, nos possibilitam reflexões sobre vários aspectos do SER HUMANO e das várias dimensões que devem estar presentes na arte de “comviver”.

Aqui destaco parte de suas palavras naquele momento:

"[...]. Um dia destes, um jovem funcionário propôs-me o pagamento de um suborno para emitir um
documento. Aquilo não correu bem porque ele, num certo momento, reconheceu-me e recuou nos seus propósitos.

Para se redimir o jovem explicou-se da seguinte maneira:
- Sabe, senhor Mia, eu gostava muito de ser uma pessoa honesta, mas falta-me o patrocínio.

Não será exatamente o patrocínio que nos afasta da honestidade. O que nos falta é criar uma narrativa que prove que a honestidade vale a pena. Houve quem confundisse o combate contra a pobreza absoluta pelo combate pela ganância absoluta. Sugeriram-nos que a autoestima pode ser resolvida pela ostentação do luxo.

Uma certa narrativa quer ainda provar que vale a pena mentir, que vale a pena roubar, e que vale a pena tudo menos ser honesto e trabalhar. Aliás, a palavra “trabalho” suscita fortíssimas alergias. Podem-se ter negócios, podem-se ter projetos. Mas ter um trabalho isso é que nunca. Que o trabalho leva muito tempo e, além disso, dá muito trabalho. Mas, no fundo, todos sabemos: enriquecer rápido e sem esforço só pode ser feito de uma maneira: roubando, vigarizando, corrompendo e sendo corrompido. Não existe, no mundo, inteiro, uma outra receita.

Preocupa-nos que os nossos estudantes entrem para universidade com fraco desempenho acadêmico. Pois eu acho mais preocupante ainda que os nossos jovens cresçam sem referências morais.

Estamos empenhados em assuntos como o empreendedorismo como se todos os nossos filhos estivessem destinados a ser empresários. Ocupamos em cursos de liderança como se a próxima geração fosse toda destinada a criar políticos e líderes. Não vejo muito interesse em preparar os nossos filhos em serem simplesmente boas pessoas, bons cidadãos do seu país, bons cidadãos do mundo.

Escrevi uma vez que a maior desgraça de um país pobre é que, em vez de produzir riqueza, vai produzindo ricos. Poderia hoje acrescentar que outro problema das nações pobres é que, em vez de produzirem conhecimento, produzem doutores (até eu agora já fui promovido..,). Em vez de promover pesquisa, emitem diplomas. Outra desgraça de uma nação pobre é o modelo único de sucesso que vendem às novas gerações. E esse modelo está bem patente nos vídeo-clips que passam na nossa televisão: um jovem rico e de maus modos, rodeado de carros de luxo e de meninas fáceis, um jovem que pensa que é americano, um jovem que odeia os pobres porque eles lhes fazem lembrar a sua própria origem.

É preciso remar contra toda essa corrente. É preciso mostrar que vale a pena ser honesto. É preciso criar histórias em que o vencedor
não é o mais poderoso. Histórias em que quem foi escolhido não foi o mais arrogante mas o mais tolerante, aquele que mais escuta os outros. Histórias em que o herói não é o lambe-botas, nem o chico-esperto. Talvez essas histórias sejam o tal patrocínio que faltou ao nosso jovem funcionário.


Tudo isto é urgente e imperioso. Porque nós estamos na eminência de desacreditar de nós mesmos. Todos nós já escutamos de alguém a seguinte desistência: não vale a pena, nós somos assim. Nós somos cabritos à espera de ser amarrados num qualquer pasto. Estamos a aprender a desqualificarmo-nos. Estamos a replicar o racismo que outros inventaram para nos despromover como um povo de qualidade moral inferior.


E vou terminar partilhando um episódio real que foi vivido por colegas meus. Depois da Independência, um programa de controlo dos caudais dos rios foi instalado em Moçambique. Formulários foram distribuídos pelas estações hidrológicas espalhadas pelo país. A guerra de desestabilização eclodiu e esse projeto, como tantos outros, foi interrompido por mais de uma dúzia de anos. Quando a Paz se reinstalou, em 1992, as autoridades relançaram esse programa acreditando que, em todo o lado, era necessário recomeçar do zero. Contudo, uma surpresa esperava a brigada que visitou uma isolada estação higrométrica no interior da Zambézia. O velho guarda tinha-se mantido ativo e cumprira, com zelo diário, a sua missão durante todos aqueles anos. Esgotados os formulários, ele passou a usar as paredes da estação para registrar, a carvão, os dados hidrológicos. No interior e exterior, as paredes estavam cobertas de anotações e a velha casa parecia um imenso livro de pedra. Ao receber a brigada o velho guarda estava à porta a estação, com orgulho de quem cumpriu dia após dia: acabou-se o papel, disse ele, mas os meus dedos não acabaram. Este é o meu livro. E apontou para a casa. [...]”



Imagens da Internet.


Sobre o autor - Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, é um escritor e biólogo moçambicano. Nasceu em 5 de julho de 1955 – Beira,
Moçambique. Mia Couto é um “escritor da terra”, escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na sua relação umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa.



2 comentários:

  1. Mia Couto nasceu 1 dia depois de mim, mas dez anos antes. Obrigado, Sônia, por me chamar a atenção sobre este autor que parece muito interessante. Vou procurar ler mais da obra dele. Bjs.

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    1. Ele realmente tem muitos textos interessantes.
      Vale a pena!
      Grata, pelo teu comentário.

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