“Jogar é arriscar-se a fazer do sonho um texto visível” (Heli Morales Ascencio)
“Aprender é arriscar-se a fazer dos sonhos textos possíveis” (Alícia Fernández)
“Por que falas em curar quando, muitas vezes, basta acompanhar um ser no seu desamparo? (Maud Mannoni)
“Aprender é quase tão lindo quanto brincar” (Lucía, 3 anos)
APRENDER É QUASE TÃO LINDO QUANTO BRINCAR
Começarei dando a palavra a duas meninas.
Trata-se de um diálogo que escutei há tempos. As meninas conversam entre elas. Sem a interferência de nenhum adulto, viram-se na necessidade de explicar o que quer dizer “aprender”. A que se refere o verbo aprender, o qual se introduz entre outro verbo que costuma ser ir, querer, ou desejar e o objeto do conhecimento? Quando dizemos: “Quero aprender computação”, ou “Desejo estudar inglês”, ou “Vou aprender matemática”, que relação se estabelece entre o querer e a computação, entre o ir e a matemática, ou entre o desejar e o inglês?
– Vou aprender a nadar – diz Silvina com a alegria de seus seis anos recém-feitos.
– Vai nadar?– intervém a irmã, três anos mais jovem.
– Não, vou aprender a nadar.
– Eu também vou brincar na piscina.
– Não é o mesmo. Eu vou aprender a nadar, diz Silvina.
– O que é aprender?
– Aprender é... como quando papai me ensinou a andar de bicicleta. Eu queria muito andar
sozinha cai, tem que segurar andando...
– Eu fico com medo de andar sem rodinhas.
– Dá um pouco de medo, mas papai segura a bici. Ele não subiu na sua bicicleta grande e disse “assim se anda de bici”... não, ele ficou correndo ao meu lado sempre segurando a bici... muitos dias e, de repente, sem que eu me desse conta disso, soltou a bici e seguiu correndo ao meu lado. Então, eu disse: Ah! Aprendi!
Uma mulher que escutava a conversa de longe não pôde deixar de ver a alegria com que foi pronunciado “aprender”, que se transfere para o corpo da mais moça e surge no brilho do seus olhos.
– Ah! Aprender é quase tão lindo quanto brincar – respondeu.
– Sabe, papai não fez como na escola. Ele não disse “Hoje é o dia de aprender a andar de bicicleta”. Primeira lição: andar direito. Segunda lição: andar rápido. Terceira lição: dobrar. Não tinha um boletim onde anotar: muito bem, excelente, regular... porque, se tivesse sido assim, não sei, algo nos meus pulmões, no meu estômago, no coração não me deixaria aprender.
A mulher, uma psicopedagoga que presenciava a cena, nunca havia escutado, nem lido, nem conseguido escrever uma explicação tão acertada do ato de ensinar e aprender, que hoje quer compartilhar algo do que essas meninas permitiram-lhe pensar.
ENSINANTES
“Papai me ensinou – Eu aprendi”
Ensinar e aprender estão imbricados; logo, não se pode pensar em um se não está em relação com o outro, mas, para explicar o que é aprender, Silvina necessitou nomear primeiro quem ensina. Nesse caso, o papai é a pessoa ensinante. A modalidade de seu pai, a posição que assumia ao ensinar, como pensava sobre si mesmo, a confiança que podia ter nele para ensinar, a importância que dava ao ensinado, assim como o que esperava de sua filha, a confiança que nela depositava em relação ao que poderia aprender, a alegria e o
prazer que a ele proporcionava estar com sua filha naquela atividade, tudo isso conformava o terreno onde sua filha iria aprender.
Por isso, Silvina disse “quando papai me ensinou”, o que é diferente de dizer “quando eu aprendi”, formulação com a qual se conclui toda a aprendizagem.
Para chegar a “eu aprendi”, precisou partir de “ele me ensinou”. Nosso idioma permite ver como a formulação “eu o aprendi” (a ele) é impossível. Se ele me ensina (a mim), eu não o aprendo (a ele).
Entre o ensinante e o aprendente abre-se um campo de diferenças onde se situa o prazer de aprender. O ensinante entrega algo, mas para poder apropriar-se daquilo o aprendente necessita inventá-lo de novo. É uma experiência de alegria, que facilita ou perturba, conforme se posiciona o ensinante.
Ensinantes são os pais, os irmãos, os tios, os avós e demais integrantes da família, como também os professores, as professoras e os companheiros na escola. Ainda que os objetos ou as máquinas possam chegar a ter uma função ensinante, a pessoa ensinante, com todas as suas características singulares, além de suas qualidades pedagógicas, é prioritária, já que mais importante do que o conteúdo ensinado é certo molde relacional que se vai imprimindo na subjetividade do aprendente.
Para que a menina pudesse apropriar-se do prazer da autoria, foi preciso que um ensinante a investisse da possibilidade de ser aprendente e da autorização de um lugar de sujeito pensante.
O caráter subjetivo da aprendizagem muitas vezes é esquecido; certos professores e pais
pretendem espertar o desejo de aprender de seus alunos e filhos, apelando para “estudar é necessário para se obter um bom trabalho”, “para ganhar dinheiro” ou “para ser reconhecido socialmente”. Assim, desmente-se o que, lamentavelmente, a sociedade atual oferece e, o que é mais grave, desvirtua-se o ato e o objeto de prender, deixando muitas crianças e adolescentes fora da possibilidade de reconhecer seu próprio desejo de aprender.
Mais do que ensinar (mostrar) conteúdos de conhecimentos, ser ensinante significa abrir um espaço para aprender. Espaço objetivo-subjetivo em que se realizam dois trabalhos simultâneos:
a) construção de conhecimentos;
b) construção de si mesmo, como sujeito criativo e pensante.
Os pais e os professores, como primeiros ensinantes, podem nutrir e produzir nas crianças esses espaços, nos quais o aprender é construtor de autoria de pensamento, ou ainda perturbá-los e até destruí-los.
A partir de seu pai, Silvina mostra-nos que o ensinante é alguém que crê e quer que o aprendente aprenda.
Os verbos querer e crer se inter-relacionam com outro: criar. Em castelhano, eu creio serve para conjugar o presente indicativo de dois verbos diferentes: crer e criar.*
*N. de T. Creer equivale a “crer”; crear equivale a “criar”; yo creo equivale tanto a “eu creio” como a “eu crio”.
O pai de Silvina necessitava crer e querer que sua filha aprendesse a andar de bicicleta e, nesse momento, seriam criadas as condições para que a menina pudesse aprender e ele ensinar.
Se um menino ou uma menina aprende a caminhar não é porque tenha pernas, mas porque seus pais desejam que ele/ela caminhe e o/a consideram capaz de caminhar. Quando nossos filhos caminham sozinhos, podem até “escapar” e ir para onde não podemos controlá-los; no entanto, mesmo sabendo disso, continuamos desejando que aprendam. Antecipamos que deixarão de necessitar de nós, que não precisarão mais que os levemos no colo e, ainda assim, promovemos a aprendizagem de caminhar. Isso quer dizer que ensinamos nosso filho a caminhar.
A aptidão para falar apóia-se em um aparelho fonador sadio, mas, para aprender a falar (destaco o termo aprender como construtor não só do objeto aprendido, mas também do sujeito), a criança precisa de adultos que a considerem um semelhante capaz de falar e entender, mesmo quando somente vocalize. Tais adultos ensinantes desejam que a criança aprendente fale, inclusive antecipando que, quando aprender a falar, poderá discutir suas indicações e até mostrar oposição à idéia de outros.
Ensinamos, e isso é prioritário, mas a criança aprende sozinha: nesse aparente paradoxo está a chave de todo o processo saudável de aprendizagem.
Já estamos percebendo como vão se inter-relacionando o aprender e os processos de diferenciação, do mesmo modo que ensinar e favorecer (suportar) que o aprendente não necessite mais de nós.
Aquilo que assinalávamos em relação ao pai e à mãe como ensinantes pode estender-se aos professores.
Embora os professores precisem possuir informação, sua função principal não é transmiti-la, mas propiciar ferramentas e espaço adequado (lúdico) onde seja possível a construção do conhecimento.
Ao ter um papel fundamental como ensinantes, eles também têm um papel como agentes subjetivantes. Podem intervir solidificando aspectos patógenos que vêm da família da criança ou, pelo contrário, propiciando movimentos saudáveis.
O estilo da modalidade ensinante dos professores permanecerá ao longo da vida de seus alunos como possibilidade de se auto-reconhecerem como seres pensantes e autores de sua história.
In - FERNANDEZ, Alícia. O Saber em Jogo: a psicopedagogia propiciando autorias de pensamento / trad. Neusa Kern Hickel - Poerto Alegre: Artmed Editora, 2001.
Sobre a Autora - Alícia Fernàndez nasceu em Buenos Aires em 1946, faleceu em 2015.
Foi psicopedagóga formada pela Faculdade de Psicopedagogía da Universidade del Salvador, Buenos aires, Argentina. Ganhou relevância acadêmica com sua obra A inteligencia Aprisionada-1991.
Foi psicopedagóga formada pela Faculdade de Psicopedagogía da Universidade del Salvador, Buenos aires, Argentina. Ganhou relevância acadêmica com sua obra A inteligencia Aprisionada-1991.
Desempenhou fundamental papel no desenvolvimento e formação de psicopedagógos em toda a América Latina e em Portugal.
Seus livros são base teórica de muitos estudos nesta área.
Inspirador! Obrigada por compartilhar 🤩
ResponderExcluirGrata, pela mensagem!
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