quarta-feira, 18 de março de 2020

Saberes Necessários... Alícia Fernandez (Parte II)

Aprender é quase tão lindo quanto brincar - Alícia Fernandez (PARTE II)

O DESEJAR E A CORPOREIDADE NA APRENDIZAGEM

“Eu queria muito aprender”

O que Silvina recorda primeiro sobre si mesma quando precisa definir o aprender? A vontade* de andar de bicicleta, o desejar, a energia desejante é muito mais que o motor do aprender: é o terreno onde se nutre.

*N. de T. Em castelhano, foi utilizada a palavra ganas, que significa um forte desejo, uma boa disposição para fazer algo. Como não é usual em nosso cotidiano, optamos por utilizar o termo “vontade”.

É a “vontade” de andar de bicicleta, e não de aprender a andar de bicicleta.

O aprender introduz-se entre a vontade e o andar. Sem dúvida, não é um simples meio nem uma técnica para conseguir fazer alguma coisa.

Diferentemente de respirar ou de outra função orgânica que vem programada de modo instintivo, andar de bicicleta, assim como caminhar, escrever e os demais conhecimentos requerem uma aprendizagem. É precisamente por isso que os processos de aprendizagem são construtores de autoria. O essencial do aprender é que ao mesmo tempo se constrói o próprio sujeito.

Qual é o plus que o aprender outorga? Algo mais profundo, subjetivante (além do esquecimento do conteúdo aprendido) permanece e transporta-se para todo o acionar do sujeito aprendente: é o prazer de dominar... a bicicleta, instrumento-lápis-escrita-conhecimento. Prazer de dirigir, de ter autonomia,
prazer de superar os limites de velocidade que o organismo permite, prazer de transcender o tempo e o espaço. Prazer de mover-se sobre a terra sem pisá-la.

Prazer de apropriar-se de sua autoria produtiva. O jogar, o aprender e o trabalho criativo nutrem-se da mesma seiva e apropriam-se do mesmo saber-sabor.

Assim, para que “a vontade de andar de bicicleta” possa operar outorgando à tarefa de andar de bicicleta a passionalidade lúdica, o excedente de alegria, a “experiência de vivência de satisfação”, a experiência de realização subjetiva requerem que o ensinante se abstenha de impor ao aprender um fim utilitário.

O desejo de andar de bicicleta não se presentificou porque a menina precisava ir mais rápido comprar pão, nem porque tinha que triunfar em uma corrida de bicicletas, nem, menos ainda, porque o pai desejava algum desses fins utilitários.

O andar de bicicleta não era o objetivo máximo, mas somente o pretexto para poder desfrutar a alegria compartilhada, o jogar com a autoria de aprender e ensinar.

A palavra “vontade” que utiliza Silvina ao dizer “eu tinha vontade de andar...”, no idioma castelhano, remete-nos ao corpo e ao desejo.

A aprendizagem é dramatizada no corpo a partir da experiência de prazer pela autoria: ser autor do ato de ensinar e de aprender.

O QUE ENTREGA O ENSINANTE

“Papai me deu uma "bici" menor do que a dele”

O ensinante entrega a ferramenta (bicicleta), não oferece diretamente o conhecimento (andar). Por outro lado, a ferramenta que entrega não é a mesma que ele utiliza.

Em muitas escolas, os professores atuam com a intenção de que as crianças aprendam usando a “bicicleta” (as ferramentas conceituais) de tamanho  igual à do professor ou o professor usando a “bicicleta” das crianças; porém, isso é igualmente impossível, eles andando em bicicletas pequenas, ou seja, infantilizando-se, o que é um outro modo de não respeitar a criança.

O pai de Silvina não subiu em sua bicicleta grande, dizendo: “Olha, filha, como eu ando e assim aprenderá a andar de bici”. Supostamente, ele teria que saber andar de bicicleta para poder ensinar sua filha; no entanto, quando o faz, corre ao lado da menina.

Com efeito, não pediu a Silvina “preste atenção”.7 Caso se tratasse de prestar atenção, o pedido seria o de que prestasse atenção nela, em seu desejo de andar de bicicleta e ver como estava fazendo. Também não mandou que ela se sentasse, dizendo: “Preste atenção, Silvina. Assim se anda de bicicleta”, nem depois deu voltas com sua enorme bicicleta frente a seus olhos espantados:
“Não se mexa, Silvina, amanhã você vai andar e eu vou sentar para lhe dizer se está fazendo certo”.

Quantas supostas patologias que se impõem à criança e que levam nomes enigmáticos, tais como ADD ou ADHD, não são mais do que déficits de atenção dos próprios estudiosos das necessidades das crianças.

COMO ENTREGA O ENSINANTE

“Papai me deu uma bici menor do que a dele. Me ajudou a subir. A bici sozinha, cai; tem que segurá-la andando. Papai segurava a bicicleta”

O pai de Silvina sustentava a bicicleta-instrumento-conhecimento-processo-construtivo. Não segurava a menina pela cintura, nem pelas pernas, menos ainda pela cabeça. Assim, facilitou a apropriação da autoria.

É claro que, para que o ensinante sustente a bicicleta (ferramenta-conceito-construção de conhecimento-espaço criativo-espaço de aprendizagem), e não a criança pelo corpo, ele precisa saber neutralizar a importância da sua figura e, para isso, precisa também estar medianamente seguro de si mesmo e ter seus próprios projetos. Ou seja, não depender de seu aprendente ou do êxito de seu aprendente para sentir-se feliz.

O LUGAR DAS TÉCNICAS

“A bici sozinha cai; tem que segurá-la andando”

Os métodos, a técnica, os diferentes procedimentos pedagógicos e psicopedagógicos “sozinhos caem”; é preciso segurá-los andando”, como a bicicleta.

O pai de Silvina não fazia o mesmo que sua filha, nem a observava passivamente.

Ele corria a seu lado. Se a bicicleta caísse, cairiam os dois. É neste lugar que se encontram o aprendente e o ensinante: no terreno de risco, no desafio de ensinar e aprender. Caso a bicicleta cambaleasse ao passar por um buraco ou uma pedra, ambos, ensinante e aprendente, necessitariam responsabilizar-se pelo fato. A responsabilidade compartilhada exime a imposição de culpas expulsivas ou imobilizantes. A culpabilização do aluno ou do professor é um desvio que impede a chegada à necessária responsabilidade.

Às vezes, os professores fazem tentativas para que seus alunos aprendam colocando-os em uma competição. Exigem que seus alunos aprendam em meio a uma corrida, com o perigo ou de perder, ou de ficar fora, ou com a obrigação exitosa de chegar primeiro. Se o pai de Silvina a tivesse ensinado no transcorrer de uma competição ciclística, nada teria conseguido. A escola, transformada em um campo de treinamento e competição, é produtora de neurose.

O LUGAR DO DESAFIO NA APRENDIZAGEM

“Me dá medo andar sem rodinhas”

Em toda aprendizagem, põe-se em jogo certa cota de temor, o qual nem sempre deve ser associado ao medo de mudança, mas aceito como próprio do encontro com a responsabilidade que a autoria supõe.

O desafio com o encontro do novo e com o fazer-se responsável por tê-lo procurado é inerente à aprendizagem. O desejo costuma estar vestido com a roupagem do medo.
Por outro lado, a culpa (inconsciente) por conhecer (Fernández, 1994) só pode ser elaborada e superada a partir da responsabilidade. Fazer-me responsável por aquilo que conheço e responder por isso.

Quando outro dirige meu andar, não me perguntará porque escolhi esse caminho. Se escolho e até construo meu próprio caminho ao andar, necessitarei explicar e explicar-me o porquê.

O desejo de conhecer (a pulsão epistemofílica) supõe o contato com a carência, com a saída da  nipotência. Alguns problemas de aprendizagem têm sua ancoragem em certa dificuldade para conectar-se com a própria carência, com a fragilidade humana. Uma sociedade que tende a endeusar crianças e jovens pode provocar problemas de aprendizagem ao esperar, paradoxalmente, tudo deles, retirando-lhes a responsabilidade que a autoria supõe.

ALEGRIA DA DESCOBERTA DA AUTORIA

Silvina começou a explicação sobre o aprender dizendo “Papai me ensinou” e finalizando
com a frase “Eu aprendi”. Começa com a terceira pessoa e finaliza com a primeira. Assim é. Ele ou ela me ensina, e eu aprendo. Eu não “sou ensinado”, nem ele “me faz aprender”.

Entre ensinar e aprender abre-se um espaço. Um campo de autorias, de diferenças. Aprender é a-prender, ou seja, não-prender. Des-prender e desprender-se.

A riqueza dessa diferença obriga-nos a pensar em pelo menos quatro questões:

a) uma prova de que o ensinante ensinou é quando o aprendente não continua necessitando dele;
b) para aprender requer-se um quantum de liberdade;
c) a liberdade supõe responsabilidade, a qual anda junto com a autoria;
d) os pais e os professores, como ensinantes, para poder ensinar, precisam alimentar seu próprio desejo de aprender, já que o desejo genuíno de ensinar só pode considerar-se como um derivado do desejo de aprender. Aqui se situa uma questão importante, que é ter em conta que o ensinar não deslize até o seduzir.



Sobre a Autora - Alícia Fernàndez nasceu em Buenos Aires em 1946, faleceu em 2015.

Foi psicopedagoga formada pela Faculdade de Psicopedagogia da Universidade del Salvador, Buenos aires, Argentina. Ganhou relevância acadêmica com sua obra A inteligencia Aprisionada-1991.

Desempenhou fundamental papel no desenvolvimento e formação de psicopedagogos em toda a América Latina e em Portugal. Seus livros são base teórica de muitos estudos nesta área.


In - FERNANDEZ, Alícia. O Saber em Jogo: a psicopedagogia propiciando autorias de pensamento / trad. Neusa Kern Hickel - Poerto Alegre: Artmed Editora, 2001.


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