A possibilidade de refletirmos sobre
vários aspectos do SER HUMANO e das várias dimensões que devem estar presentes
na arte de “com-viver” é contemplada nas palavras de .Mia Couto na cerimônia de
recebimento do Título de Doutor Honoris Causa em 2015.
Destaco aqui parte de suas
palavras naquele momento...
"[...]. Um dia destes, um
jovem funcionário propôs-me o pagamento de um suborno para emitir um documento.
Aquilo não correu bem porque ele, num certo momento, reconheceu-me e recuou nos
seus propósitos.
Para se redimir o jovem
explicou-se da seguinte maneira: - Sabe, senhor Mia, eu gostava muito de ser
uma pessoa honesta, mas falta-me o patrocínio.
Não será exatamente o patrocínio
que nos afasta da honestidade. O que nos falta é criar uma narrativa que prove
que a honestidade vale a pena. Houve quem confundisse o combate contra a
pobreza absoluta pelo combate pela ganância absoluta. Sugeriram-nos que a
autoestima pode ser resolvida pela ostentação do luxo.
Uma certa narrativa quer ainda
provar que vale a pena mentir, que vale a pena roubar, e que vale a pena tudo
menos ser honesto e trabalhar. Aliás, a palavra “trabalho” suscita fortíssimas
alergias. Podem-se ter negócios, podem-se ter projetos. Mas ter um trabalho
isso é que nunca. Que o trabalho leva muito tempo e, além disso, dá muito
trabalho. Mas, no fundo, todos sabemos: enriquecer rápido e sem esforço só pode
ser feito de uma maneira: roubando, vigarizando, corrompendo e sendo
corrompido. Não existe, no mundo, inteiro, uma outra receita.
Preocupa-nos que os nossos
estudantes entrem para universidade com fraco desempenho acadêmico. Pois eu
acho mais preocupante ainda que os nossos jovens cresçam sem referências
morais.
Estamos empenhados em assuntos
como o empreendedorismo como se todos os nossos filhos estivessem destinados a
ser empresários. Ocupamos em cursos de liderança como se a próxima geração
fosse toda destinada a criar políticos e líderes. Não vejo muito interesse em
preparar os nossos filhos em serem simplesmente boas pessoas, bons cidadãos do
seu país, bons cidadãos do mundo.
Escrevi uma vez que a maior
desgraça de um país pobre é que, em vez de produzir riqueza, vai produzindo
ricos. Poderia hoje acrescentar que outro problema das nações pobres é que, em
vez de produzirem conhecimento, produzem doutores (até eu agora já fui
promovido...). Em vez de promover pesquisa, emitem diplomas. Outra desgraça de
uma nação pobre é o modelo único de sucesso que vendem às novas gerações. E
esse modelo está bem patente nos vídeo-clips que passam na nossa televisão: um
jovem rico e de maus modos, rodeado de carros de luxo e de meninas fáceis, um
jovem que pensa que é americano, um jovem que odeia os pobres porque eles lhes
fazem lembrar a sua própria origem.
É preciso remar contra toda essa
corrente. É preciso mostrar que vale a pena ser honesto. É preciso criar
histórias em que o vencedor não é o mais poderoso. Histórias em que quem foi
escolhido não foi o mais arrogante, mas o mais tolerante, aquele que mais
escuta os outros. Histórias em que o herói não é o lambe-botas, nem o
chico-esperto. Talvez essas histórias sejam o tal patrocínio que faltou ao
nosso jovem funcionário.
Tudo isto é urgente e imperioso. Porque
nós estamos na eminência de desacreditar de nós mesmos. Todos nós já
escutamos de alguém a seguinte desistência: não vale a pena, nós somos assim.
Nós somos cabritos à espera de ser amarrados num qualquer pasto. Estamos a
aprender a desqualificarmo-nos. Estamos a replicar o racismo que outros
inventaram para nos despromover como um povo de qualidade moral inferior.
E vou terminar partilhando um episódio real que foi
vivido por colegas meus. Depois da Independência, um programa de controlo dos
caudais dos rios foi instalado em Moçambique. Formulários foram distribuídos
pelas estações hidrológicas espalhadas pelo país. A guerra de desestabilização
eclodiu e esse projeto, como tantos outros, foi interrompido por mais de uma
dúzia de anos. Quando a Paz se reinstalou, em 1992, as autoridades relançaram
esse programa acreditando que, em todo o lado, era necessário recomeçar do
zero. Contudo, uma surpresa esperava a brigada que visitou uma isolada estação
higrométrica no interior da Zambézia. O velho guarda tinha-se mantido ativo e
cumprira, com zelo diário, a sua missão durante todos aqueles anos. Esgotados
os formulários, ele passou a usar as paredes da estação para registrar, a
carvão, os dados hidrológicos. No interior e exterior, as paredes estavam
cobertas de anotações e a velha casa parecia um imenso livro de pedra. Ao
receber a brigada o velho guarda estava à porta a estação, com orgulho de quem
cumpriu dia após dia: acabou-se o papel, disse ele, mas os meus dedos não
acabaram. Este é o meu livro. E apontou para a casa. [...]”
Imagens da Internet.
Sobre o autor - Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, é um escritor e biólogo moçambicano. Nasceu em 5 de julho de 1955 – Beira, Moçambique. Mia Couto é um “escritor da terra”, escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na sua relação umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa.
In - http://www.miacouto.org/biografia-bibliografia-e-premiacoes/
OBSERVAÇÃO - texto postado neste Blog em 13/11/2017.
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