quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O que é letramento e alfabetização (Magda Becker Soares)



Neste texto, vamos discutir conceitos e, portanto, palavras, ou, se quiserem, vamos discutir palavras e, portanto, conceitos: os conceitos alfabetização e letramento, as palavras alfabetização e letramento. 

Em um primeiro momento, gostaria de fazer um "passeio" pelo campo semântico em que se inserem essas palavras, esses conceitos. São palavras de uso comum, conhecidas, exceto talvez letramento, palavra ainda desconhecida ou mal entendida, ou ainda não plenamente compreendida pela maioria das pessoas, porque é palavra que entrou na nossa língua há muito pouco tempo. 

ALFABETIZAÇÃO - ALFABETIZAR  - ALFABETIZADO - ANALFABETISMO - ANALFABETO LETRAMENTO - LETRADO - ILETRADO - ALFABETISMO 

Não precisamos definir essas palavras, porque estamos familiarizados com elas, talvez com exceção apenas da palavra letramento. Mas vou me deter nelas para conduzir nossa reflexão em direção ao sentido de letramento. 

Vejamos as definições que aparecem no dicionário Aurélio: 

analfabetismo: estado ou condição de analfabeto a(n) + alfabet + ismo a- : prefixo grego (acrescenta-se um -n- quando a palavra a que é adicionado começa com vogal) indica: privação, falta de. 

Exemplos: acéfalo: sem cabeça, sem cérebro; amoral: privado de moral. - ismo sufixo, indica: modo de proceder, de pensar. 

Exemplos: heroísmo: procedimento de herói; servilismo: procedimento servil. analfabeto: que não conhece o alfabeto; que não sabe ler e escrever a(n) + alfabeto Nas palavras analfabetismo e analfabeto aparece o prefixo a(n)-: 

Analfabeto é aquele que é privado do alfabeto, a que falta o alfabeto, ou seja, aquele que não conhece o alfabeto, que não sabe ler e escrever. (Ao pé da letra, significa aquele que não sabe nem o alfa, nem o beta - alfa e beta são as primeiras letras do alfabeto grego; em outras palavras: aquele que não sabe o bê-a-bá.) 

Em analfabetismo,o substantivo, aparece ainda o sufixo -ismo: a palavra significa um modo de proceder como analfabeto, ou seja: analfabetismo é um estado, uma condição, o modo de proceder daquele que é analfabeto. alfabetizar: ensinar a ler e a escrever alfabet + izar - izar: sufixo, indica: tornar, fazer com que. 

Exemplos: suavizar: tornar suave; industrializar: tornar industrial Alfabetizar é tornar o indivíduo capaz de ler e escrever. Alfabetização: ação de alfabetizar Alfabet + iza(r) + ção - ção: sufixo que forma substantivos indica: ação 

Exemplos: traição: ação de trair nomeação: ação de nomear Alfabetização é a ação de alfabetizar, de tornar "alfabeto". Causa estranheza o uso dessa palavra "alfabeto", na expressão "tornar alfabeto". É que dispomos da palavra analfabeto, mas não temos o contrário dela: temos a palavra negativa, mas não temos a palavra positiva. É no campo semântico dessas palavras que conhecemos bem - analfabetismo, analfabeto, alfabetização, alfabetizar - que surge a palavra letramento. 

Como surgiu essa palavra e o que quer ela dizer? LETRAMENTO? Conhecemos as palavras letrado e iletrado: Letrado: versado em letras, erudito iletrado: que não tem conhecimentos literários uma pessoa letrada = uma pessoa erudita, versada em letras (letras significando literatura, línguas) uma pessoa iletrada = uma pessoa que não tem conhecimentos literários, que não é erudita; analfabeta, ou quase analfabeta. 

O sentido que temos atribuído aos adjetivos letrado e iletrado não está relacionado com o sentido da palavra letramento. A palavra letramento ainda não está dicionarizada, porque foi introduzida muito recentemente na língua portuguesa, tanto que quase podemos datar com precisão sua entrada na nossa língua, identificar quando e onde essa palavra foi usada pela primeira vez. 

Parece que a palavra letramento apareceu pela primeira vez no livro de Mary Kato: No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, de 1986. 

A palavra letramento não é, como se vê, definida pela autora e, depois dessa referência, é usada várias vezes no livro; foi, provavelmente, essa a primeira vez que a palavra letramento apareceu na língua portuguesa - 1986. 

Depois da referência de Mary Kato, em 1986, a palavra letramento aparece em 1988, no livro que, pode-se dizer, lançou a palavra no mundo da educação, dedica páginas à definição de letramento e busca distinguir letramento de alfabetização: é o livro Adultos não alfabetizados - o avesso do avesso, de Leda Verdiani Tfouni (São Paulo, Pontes, 1988, Coleção Linguagem/Perspectivas) um estudo sobre o modo de falar e de pensar de adultos analfabetos. Mais recentemente, a palavra tornou-se bastante corrente, aparecendo até mesmo em título de livros, por exemplo: Os significados do letramento, coletânea de textos organizada por Ângela Kleiman, (Campinas, Mercado das Letras, 1995) e Alfabetização e letramento, da mesma Leda Verdiani Tfouni, anteriormente mencionada (São Paulo, Cortez, 1995, Coleção Questões de nossa época). 

Na busca de esclarecer o que seja letramento, talvez seja interessante refletirmos sobre o seguinte: vivemos séculos sem precisar da palavra letramento; a partir dos anos 80, começamos a precisar dessa palavra, inventamos essa palavra - por quê, para quê?

TEXTO COMPLETOO que é letramento e alfabetização.doc.pdf 

https://pibidletrasunifra.webnode.com.br/news/oqueeletramentoealfabetizaçao/magdabeckersoares



AUTORA - Magda Becker Soares (Belo Horizonte). 7 de setembro de 1932) é professora titular emérita da Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – Ceale – da Faculdade de Educação da UFMG. Graduada em Letras, doutora e livre-docente em Educação. É autora de diversos livros, e especialmente conhecida por seus livros didáticos de Língua portuguesa usados dos anos 1970 a 1990.




terça-feira, 13 de setembro de 2022

Alfabetização e educação infantil: Relações delicadas (Parte2)


Brincar ou alfabetizar?


Essa é outra pergunta mal formulada e pressupõe imediatamente uma exclusão desnecessária. As posições antagônicas não ajudam a avançar nem a brincadeira nem o conhecimento da língua escrita. Nas sociedades urbanas as crianças brincam incorporando ações dos adultos, que incluem também eventos onde ler e escrever fazem sentido. Quando se proíbe que o educador desenvolva atividades de leitura e escrita em uma concepção que respeita o processo de construção de conhecimentos da criança, abre-se caminho para que as práticas equivocadas de alfabetização apareçam, ainda que disfarçadas, quando o controle das equipes dirigentes não é efetivo.

Crianças pequenas devem brincar muito na educação infantil, mas também precisam ter contatos sistemáticos com leitura e escrita. A isso chamamos alfabetizar em um contexto amplo, muito diferente de fazer exercícios de coordenação motora, aprender letras isoladas, copiar sílabas ou palavras “fáceis”. Essas práticas nefastas persistem e continuarão presentes na educação infantil enquanto a discussão sobre os processos de alfabetização não for levada a efeito com seriedade e concretude.

Alfabetizar para incluir
É curioso notar que a despeito das melhores intenções, muitas vezes a pretexto de proteger a cultura da infância, se nega às crianças o direito de se relacionar na plenitude com a língua materna. Cria-se, na educação infantil, um ambiente estéril de onde a língua escrita é quase banida. E são as crianças de baixa renda as maiores prejudicadas por esse afastamento. Se para a criança dominar a linguagem escrita, tal como se manifesta no mundo – é preciso percorrer um longo processo de reflexão e reformulação de hipóteses próprias para compreender o que é essa escrita, para que serve e como funciona – o acesso cotidiano é fundamental.

Temos assim não só um problema pedagógico, mas também ético e político. Podemos negar às crianças de baixa renda o acesso? É sobre isso que a escola de educação infantil deve pensar. Telma Weisz3, doutora em psicologia da educação, dedicando-se há anos à causa da alfabetização, questiona: Será que temos, novamente, mais um argumento para provar sua inferioridade (das crianças pobres)? Vejamos, então, o que se passa. Para uma criança caminhar em seu processo de alfabetização, ela precisa pensar sobre a escrita. E para isso precisa entrar em contato com esta. Esse contato implica tanto o acesso aos portadores de textos como a atos reais de leitura e de escrita. Uma família de classe média compra livros de história e revistas em quadrinhos para seus filhos ainda não alfabetizados, frequentemente lê para eles e realiza cotidianamente uma quantidade enorme de atos de leitura e escrita que permitem à criança pensar sobre para que serve a escrita e todas as possibilidades que ela abre. As famílias de classe média ensinam seus filhos pequenos a escrever o próprio nome e o das outras pessoas da casa sem nenhuma preocupação escolar.

Apenas porque as crianças se mostram interessadas. E essas se mostram interessadas porque o ato de escrever (ou ler) é visivelmente importante no meio em que elas vivem. Não é de se estranhar que sejam essas as crianças que têm bom desempenho na escola, elas já entram praticamente alfabetizadas. Não é também de se estranhar que as crianças que vêm de comunidades onde o jornal serve para tudo, menos para ler, onde a leitura e a escrita quase não fazem parte do cotidiano, onde os informantes são raros e inseguros, tenham hipóteses primitivas sobre a escrita. Não é possível pensar sobre um objeto ausente. Essas considerações, longe de encerrar o debate, abrem caminho para que se compreenda a questão da alfabetização na pré-escola sem preconceitos e com responsabilidade.

Leve você também esse debate para sua escola e participe desta seção enviando sua opinião, dúvidas e exemplos de trabalho que se alinham com essa concepção. E veja a seguir um exemplo de como a alfabetização pode respeitar o jeito como as crianças pensam.
(Ana Lucia Bresciane, formadora do Instituto Avisa Lá)
3Revendo a Função Pedagógica da Pré-escola, in Caderno Idéias FDE, no 2, 1988.

FONTE - https://avisala.org.br/index.php/conteudo-por-edicoes/revista-avisala-17/alfabetizacao-e-educacao-infantil-relacoes-delicadas. Postado em  22/01/2004.

Este conteúdo faz parte da Revista Avisa lá edição #17 de janeiro de 2004. Caso queira acessar o conteúdo completo, compre a edição em PDF ou impressa através de nossa loja virtual – http://loja.avisala.org.br