Brincar ou alfabetizar?
Essa é outra pergunta mal formulada e pressupõe imediatamente uma exclusão desnecessária. As posições antagônicas não ajudam a avançar nem a brincadeira nem o conhecimento da língua escrita. Nas sociedades urbanas as crianças brincam incorporando ações dos adultos, que incluem também eventos onde ler e escrever fazem sentido. Quando se proíbe que o educador desenvolva atividades de leitura e escrita em uma concepção que respeita o processo de construção de conhecimentos da criança, abre-se caminho para que as práticas equivocadas de alfabetização apareçam, ainda que disfarçadas, quando o controle das equipes dirigentes não é efetivo.
Crianças pequenas devem brincar muito na educação infantil, mas também precisam ter contatos sistemáticos com leitura e escrita. A isso chamamos alfabetizar em um contexto amplo, muito diferente de fazer exercícios de coordenação motora, aprender letras isoladas, copiar sílabas ou palavras “fáceis”. Essas práticas nefastas persistem e continuarão presentes na educação infantil enquanto a discussão sobre os processos de alfabetização não for levada a efeito com seriedade e concretude.
Alfabetizar para incluir
É curioso notar que a despeito das melhores intenções, muitas vezes a pretexto de proteger a cultura da infância, se nega às crianças o direito de se relacionar na plenitude com a língua materna. Cria-se, na educação infantil, um ambiente estéril de onde a língua escrita é quase banida. E são as crianças de baixa renda as maiores prejudicadas por esse afastamento. Se para a criança dominar a linguagem escrita, tal como se manifesta no mundo – é preciso percorrer um longo processo de reflexão e reformulação de hipóteses próprias para compreender o que é essa escrita, para que serve e como funciona – o acesso cotidiano é fundamental.
Temos assim não só um problema pedagógico, mas também ético e político. Podemos negar às crianças de baixa renda o acesso? É sobre isso que a escola de educação infantil deve pensar. Telma Weisz3, doutora em psicologia da educação, dedicando-se há anos à causa da alfabetização, questiona: Será que temos, novamente, mais um argumento para provar sua inferioridade (das crianças pobres)? Vejamos, então, o que se passa. Para uma criança caminhar em seu processo de alfabetização, ela precisa pensar sobre a escrita. E para isso precisa entrar em contato com esta. Esse contato implica tanto o acesso aos portadores de textos como a atos reais de leitura e de escrita. Uma família de classe média compra livros de história e revistas em quadrinhos para seus filhos ainda não alfabetizados, frequentemente lê para eles e realiza cotidianamente uma quantidade enorme de atos de leitura e escrita que permitem à criança pensar sobre para que serve a escrita e todas as possibilidades que ela abre. As famílias de classe média ensinam seus filhos pequenos a escrever o próprio nome e o das outras pessoas da casa sem nenhuma preocupação escolar.
Apenas porque as crianças se mostram interessadas. E essas se mostram interessadas porque o ato de escrever (ou ler) é visivelmente importante no meio em que elas vivem. Não é de se estranhar que sejam essas as crianças que têm bom desempenho na escola, elas já entram praticamente alfabetizadas. Não é também de se estranhar que as crianças que vêm de comunidades onde o jornal serve para tudo, menos para ler, onde a leitura e a escrita quase não fazem parte do cotidiano, onde os informantes são raros e inseguros, tenham hipóteses primitivas sobre a escrita. Não é possível pensar sobre um objeto ausente. Essas considerações, longe de encerrar o debate, abrem caminho para que se compreenda a questão da alfabetização na pré-escola sem preconceitos e com responsabilidade.
Leve você também esse debate para sua escola e participe desta seção enviando sua opinião, dúvidas e exemplos de trabalho que se alinham com essa concepção. E veja a seguir um exemplo de como a alfabetização pode respeitar o jeito como as crianças pensam.
(Ana Lucia Bresciane, formadora do Instituto Avisa Lá)
3Revendo a Função Pedagógica da Pré-escola, in Caderno Idéias FDE, no 2, 1988.
FONTE - https://avisala.org.br/index.php/conteudo-por-edicoes/revista-avisala-17/alfabetizacao-e-educacao-infantil-relacoes-delicadas. Postado em 22/01/2004.
Este conteúdo faz parte da Revista Avisa lá edição #17 de janeiro de 2004. Caso queira acessar o conteúdo completo, compre a edição em PDF ou impressa através de nossa loja virtual – http://loja.avisala.org.br
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