“Há muita
burocracia, muitos tentam transformar a escola numa empresa, mas queremos
desconstruir esse olhar. Muitos falam que não dá para mudar a escola, não
acreditam. Mas a gente prova, depois de um ano de projeto, que é possível fazer
uma escola diferente. E a mudança contagia”, comenta Lúcia Cristina Santos,
diretora da Escola Professor Waldir Garcia, em Manaus (AM), em uma inspiradora
conversa que durou mais de três horas.
Um dos
elementos que chama atenção perto da mesa de Lúcia é um estandarte com o
colorido desenho de um boi e o nome dele: Garcioso. É uma lembrança do Festival
de Folclore que mobiliza toda a comunidade e gera renda para a escola realizar
pequenos consertos.
A Waldir
Garcia, que recebe alunos do 1º ao 5º ano, foi a primeira escola de ensino
integral de Manaus, e hoje já são cinco no total. O atual projeto se
desenvolve com o apoio do Coletivo Escola Família do Amazonas (CEFA), um grupo
de famílias que se reuniu para dialogar sobre a educação dos filhos, com a
intenção de tirá-los de escolas particulares e matriculá-los em
instituições públicas. Como sonhavam com uma educação transformadora,
diferente, membros do CEFA descobriram várias práticas criativas e
escreveram um projeto da escola que gostariam, em seguida apresentado para a
secretaria municipal de educação. “Nós da escola Waldir Garcia queríamos
realizar esse projeto na prática. E ano passado iniciamos, em fevereiro”, relembra
Lúcia, que também viajou a São Paulo duas vezes, acompanhada de pessoas da sua
equipe, para participar de um encontro sobre educação integral e se inspirar
com iniciativas como a Escola Municipal Campos Salles, no Bairro Educador
Heliópolis, e a EMEI Gabriel Prestes, na Rua da Consolação.
Lúcia
anda comigo pela escola e mostra o lugar onde acontecem as assembleias
semanais, prática que iniciou também em fevereiro do ano passado. Os alunos
decidiram, por exemplo, depois de vários diálogos em assembleia, que os
duzentos estudantes da escola não mais teriam intervalos separados, mas sim um
mesmo momento de recreio, para conviverem mais próximos. Eles assumiram a
responsabilidade de organizar o intervalo com todos alunos ao mesmo tempo.
Andando
pelo Chapéu de Palha, nome do espaço na escola onde ocorrem as assembleias, dá
pra ver uma marca de água nas paredes. É indício das cheias. Quando aumenta o
nível do igarapé, a água toma conta dos arredores e de parte da própria escola.
Dois anos atrás, para facilitar a presença dos alunos, alguns até
acamparam nas salas de aula da Waldir Garcia. Entre os estudantes, há
dezenove imigrantes, a maioria haitianos.
Entro nas
salas de aula e vejo crianças que estão reaprendendo o que é uma escola. Desde
o início do ano passado, muitas práticas mudaram na Waldir Garcia além da
criação de assembleias.
Os alunos
passaram a se encontrar semanalmente com tutores, para refletir sobre seus
projetos de vida. É um momento para questionar quais são seus sonhos e como
podem realizar essas aspirações. Outros funcionários da escola, que trabalham
com a merenda e serviços gerais, também podem exercer o papel de tutores, assim
como membros das famílias. E mais: todos os funcionários da Waldir
Garcia também têm tutores, com quem combinam encontros de estudos e
conversas – o tutor é alguém disponível para escutá-los. “A gente sentia
que a merendeira, por exemplo, não se considerava parte do processo de
educação, achando que só fazia a merenda e ponto. Mas a gente sabe o quanto ela
é fundamental”, diz Lúcia.
Foram
criados os grupos de responsabilidade, para que as crianças e jovens se
comprometam, junto com seus tutores, a cuidar da escola no dia a dia. Há
um grupo que apoia no recreio, outro na merenda, na sala de computadores e
outros mais.
Os alunos
passaram a aprender filosofia desde o primeiro ano, com a oficina de iniciação
ao pensamento filosófico.
Aumentaram
as visitas a espaços da região, para aprender sobre meio ambiente no parque,
para ocupar o entorno com piqueniques, para assistir a filmes na tela do cinema.
Acabaram
as filas no momento da entrada da escola, gerando uma polêmica com os
pais, que reclamaram, viam o fim das filas como sinal de
desorganização.
Encontro na
quadra da escola durante a semana de literatura amazonense
Jovens
nas mesas compartilhadas, em estudos a partir de roteiros de pesquisa
individuais
“É
preciso que o aluno seja protagonista, é preciso que o aluno desenvolva sua
autonomia. Quando ele sai da escola quase nunca tem alguém o conduzindo pela
mão. A autonomia é importante para a vida. Mas muitos pais ainda pensam que a
melhor escola é a tradicional, a escola de quem decora, copia, responde
pergunta de prova. Nosso desafio é envolver mais as famílias, para que
entendam: os estudantes dão mais importância para a escola quando são
protagonistas da própria educação, quando são convidados a participar, não
recebendo tudo pronto. Aí os estudantes passam a ver a escola com outros
olhos”, comenta Lúcia, ressaltando que os jovens são avaliados na escola não
mais com provas bimestrais, mas sim ao longo do processo e com autoavaliações
individuais e em grupo.
A
diretora anda mais um pouco e me mostra a quadra. Já é noite e
agora acontece uma partida de futebol a todo vapor, com um time de
jovens estudantes da escola. Algumas pessoas que assistem à partida estão com
sacolas de quitutes, para daqui a pouco celebrarem o aniversário de um dos
garotos ao redor de uma mesa num dos cantos da quadra. Todos esses
jovens e adultos estão na escola fora do horário de aula. É que a Waldir
Garcia possibilita que a comunidade local use a quadra para praticar esportes
ou mesmo desenvolver outras atividades, como as aulas de zumba que acontecem
semanalmente. É só assinar um termo de responsabilidade para cuidar do espaço e
respeitar os horários combinados.
Enquanto
celebram o aniversário, celebro a existência dessa escola e da força das
educadoras envolvidas nesse projeto. Espalhar essa história para que mais
pessoas conheçam é fundamental para que nosso imaginário nutra-se não apenas
das tragédias e retrocessos do presente, mas também das resistências que
aumentam nosso fôlego.
* A
Escola Municipal Waldir Garcia é a primeira escola do Norte do Brasil a ser
selecionada pelo Escola Transformadoras, um projeto que está criando uma
rede com iniciativas de educação inspiradoras e com impacto relevante nas
suas comunidades.
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Sobre
o Autor
André
Gravatá é escritor e educador. Autor do livro Sublime e coautor do Volta ao
mundo em 13 escolas e Mistérios da Educação. É um dos criadores da Virada
Educação, que mobiliza escolas e territórios pelo Brasil. Hoje desenvolve uma
pesquisa intitulada A Vida nas Cidades Educadoras e espalha sua poesia no
jornal das miudezas. Em 2015, recebeu o prêmio Educador Inventor da Associação
Cidade Escola Aprendiz.
[i] Texto original postado em 27/04/2017.- http://andregravata.blogosfera.uol.com.br/2017/04/27/escola-em-manaus/?cmpid=copiaecola
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