sexta-feira, 27 de maio de 2016

Poesia e o desenvolvimento infantil: Sentipensar*

A musicalidade da palavras atrai as crianças. O poema ritmado, curto, com palavras simples é o caminho para que elas gostem da poesia.

Sônia Maria de Araújo Peixoto | pedagoga

A poesia se faz presente nas brincadeiras das crianças onde as palavras brincam, dançam, encantam e permeiam a atividade desenvolvida com afetividade e sensibilidade. Para que a criança perceba e vivencie a poesia em seu entorno: em poemas, músicas, parlendas, adivinhações, resoluções de problemas, trava-língua e outras atividades, se faz necessário a presença da ludicidade presente e expressa nas diversas linguagens a serem apresentadas às crianças.

O potencial de desenvolvimento infantil é "tocado" por alguns autores que transmitem de forma inteligente e sensível a poesia em suas obras, com musicalidade, com rimas, repetições de palavras, sem palavras e termos infantilizados e/ou rebuscados, onde o entendimento sobre novas palavras acontece de forma natural.
A educação para a sensibilidade poética, para o sentipensar, para a poesia deve estar relacionada a um projeto para a vida e não somente na infância; no entanto se for parte da proposta de desenvolvimento infantil, a possibilidade de esta criança vir a ser um adulto mais sensível, mais alegre, mais humano é bem maior.
Nesse sentido, é fundamental possibilitar às crianças (nas famílias, nas instituições de educação infantil), momentos de ludicidade, como sendo uma atividade constante, com a audição e leitura dos diversos tipos de portadores de poesia, para que possam ser apreciados, sentidos, e possibilitar, ainda, que a criança manifeste preferência dentre a diversidade a ela apresentada.
O desenvolvimento da criança, pautado no sentipensar, rompe com a forma "cartesiana"tão presente nas famílias e instituições de educação, não só de educação infantil, onde o sentir e o pensar são aspectos opostos e não se juntam. O sentipensar é concebido como poesia, pois proporciona a manifestação das emoções pelo toque, pelo que comove, pelo que alegra e pelo que leva à humanização.
Na literatura temos alguns presentes de sensibilidade, onde a poesia se faz sentida em diversas obras. Aqui destaco partes do texto de Rubem Alves em seu livro A menina e o pássaro encantado, com ilustração de Bianca. O texto apresenta o predomínio do sentipensar, do afetivo e ainda a desconstrução de alguns conceitos. Aspectos estes tão presentes nas obras deste autor.
No início do livro, Rubem Alves apresenta orientações para o adulto que pretende ler para a criança. Inicia dizendo que a história fala sobre separação, momento em que duas pessoas que, mesmo se amando, têm que dizer adeus.
Continua o autor: ...Esta estória, eu não inventei. Fiquei triste vendo a tristeza de uma criança que chorava uma despedida... E a estória simplesmente apareceu dentro de mim, quase pronta.
Assim, busca abrir espaço na mente, no coração de quem vai ler e ouvir, buscando ainda estimular seus sentimentos. Indaga sobre a utilidade da estória, dizendo que por não compreender sua função, alguns pensam que a estória tem o objetivo de divertir.
Discorda deste posicionamento, dizendo que elas têm o poder de transfigurar o cotidiano. Elas chamam as angústias pelos seus nomes e dizem o medo em canções. E por esse motivo, as histórias são para todas as crianças, as grandes e as pequenas, mas especialmente a que está dentro de cada um de nós.
E assim começa a história:
Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo. Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado.
E o texto continua apresentando aspectos bastante estimulantes e tocantes no que se refere principalmente às emoções.
Em outro trecho o pássaro partiu:
...Voou que voou, para lugares distantes. A menina contava os dias, e cada dia que passava, a saudade crescia. [...] E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos, e pentear os cabelos e colocava uma flor na jarra...
'- Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje...' [...]. Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o pássaro.
O texto de Rubem Alves apresenta aspectos importantes para o desenvolvimento da capacidade imaginativa e criativa de quem o ouve/lê, com aspectos emotivos que possibilitam criar novas significações que poderão ser mais que informação.
O aspecto lúdico-sonoro, por meio das rimas, do ritmo, da aproximação de palavras com semelhança de sons está presente nas parlendas, nas adivinhações, nos acalantes.
As adivinhações têm origem na tradição popular, apresentam-se em pequenos versos, como um enigma a ser resolvido, exigindo atenção para respondê-las, como podemos ver: O que é, o que é? A mãe é verde, A filha encarnada, A mãe é mansa, A filha é braba. A resposta nem sempre é fácil como supõe a pessoa proponente da questão, pois estas surgem de um contexto específico. No caso da adivinhação proposta, a resposta é "pimenta".
Um desdobramento das "adivinhações", também denominada de resolução de problemas, apresenta rimas que estimulam o pensar e a elaboração mental com vista à resolução de uma questão ou situação apresentada. Como esta: Uma sala tem quatro cantos. Cada canto tem um macaco. Cada macaco vê três macacos. Quantos macacos têm? Assim, a poesia permeada do sentipensar é um dos grandes instrumentos para o desenvolvimento infantil.
Finalizo com trechos do poema de Lóris Malaguzzi, As Cem Linguagens da Criança, permeados de poesia, que alerta e se faz presente na intencionalidade reflexiva deste texto: poesia, desenvolvimento e sentipensar...
A criança é feita de cem.
[...]
A criança tem
uma centena de línguas
 (E um cem cem cem mais)
mas eles roubam 99.
A escola e a cultura
lhe separa a cabeça do corpo.

[...]

Dizem-lhe:
que trabalho e lazer
realidade e fantasia
ciência e imaginação
o céu e a terra
razão e sonho
são coisas
que não pertencem juntos.
E assim eles dizem à criança que o cem não existe. A criança diz: De jeito nenhum. O cem é lá.



* Sentipensar, termo criado pelo prof. Saturnino de La Torre (l997). Indica "o processo mediante o qual colocamos para trabalhar conjuntamente o pensamento e o sentimento".

Publicado no catálogo Valer infantojuvenil, Editora Valer Ano I, Nº 1, 2014.

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